Título: Vestal malcuidada
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

Partido que se conduzia conforme o princípio leninista do "centralismo democrático" - que impõe aos seus membros a obrigação de respeitar sem ponderar a decisão da cúpula partidária -, o PT mudou. Em 1984 expulsou três deputados federais porque votaram em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Há alguns anos, expulsou os "quatro radicais" que ousaram descumprir a decisão central. Outros - não poucos - ensaiaram discrepar, mas, prudente, o PT, contrafeito, foi leniente com as veleidades de oposição interna. Não suportando o desafio do deputado Virgílio Guimarães, aplicou-lhe punição branda. Estava enfraquecido ou moribundo o centralismo dito democrático.

Hoje "a ética divide o partido" - dizem os seus analistas -, o que é um golpe mortal no patrimônio moral do partido que se considerava a vestal da política. Correntes de insatisfeitos pretendem substituir o presidente do PT e já enfrentam o próprio Lula, que chega a dizer que desse modo não será candidato à reeleição. Mas foi com a sua eleição que sobreveio o problema ético de permeio com o desencanto ideológico. Ético porque, a fim de manter maioria no Legislativo, Lula fez alianças de toda natureza. Já em 2002 dizia que "aliança se faz quando serve ao partido e ao País. Quando não dá certo, a gente desfaz". Desencanto ideológico porque, tendo quadros marxistas-leninistas, que o ajudaram desde a fundação do partido, e comunistas vencidos na luta armada no ciclo militar, declarou que "o socialismo é a utopia do PT".

No meio do século 19, as esquerdas européias decidiam qual o nome a dar ao partido que as congregaria. Muitos preferiam chamá-lo maximalista, a maioria preferia Partido Comunista e Engels, Partido dos Trabalhadores. "Para", pregava ele, "que o proletariado se torne forte o bastante para a conquista no dia da decisão é necessário que forme o seu próprio partido, separado de todos os outros e a eles oposto, um partido da classe operária."

Quando nasceu o PT, tudo indicava que tomaria o modelo de Engels. Lula sustentava precisar ter o seu próprio partido porque todos os outros "eram farinha do mesmo saco". Daí ter recusado o voto de Ulysses Guimarães, símbolo da resistência ao autoritarismo.

Na quarta tentativa de presidir a República, já era diferente. Não mais um conjunto de vestais e de intransigentes éticos. Lula defendeu-se de fazer alianças de antônimos, dizendo à sua maneira: "Quem tem pressa come cru" - o que sugeria querer apenas ganhar tempo para realizar o objetivo radical socialista que assinara no Foro de São Paulo, das esquerdas mundiais reunidas em 1990. Cedia a um partido reformista, de transição, adotando a tática de tranqüilizar a burguesia, cuja aliança lhe foi a mais proveitosa. Para a Vice-Presidência iria o eminente industrial José Alencar, a despeito das vaias estrepitosas dos velhos militantes do PT, quando apresentado publicamente, como companheiro de chapa.

A classe média votou maciçamente em Lula. O Brasil parecia ter dado uma lição ao mundo: um operário socialista, sem grande suporte financeiro, chegava pacificamente ao poder num país habitado por maioria burguesa. Mas a vitória não assegurava a maioria de que o partido precisava para governar. Então o princípio de Engels foi por água abaixo. A maioria parlamentar era essencial à governabilidade e certamente já à reeleição do presidente, cujo carisma weberiano o tornava praticamente imbatível.

O resultado está nos episódios que abarrotam a mídia a cada dia, com gravações em que um corrupto recebe dinheiro espúrio e diz ter a cobertura dos seus superiores nos Correios e fora deles. Sucedem-se os indícios de que não se trata de um reles corrupto isolado, mas de muitos deles. Lê-se que o PT se divide, entre os que se limitam a dizer que acusações são mendazes, mentirosas, e os éticos, que querem apurar tudo. Manobras cada vez mais antiéticas são feitas para evitar a CPI, repetindo as mesmas ocorridas com Waldomiro Diniz.

O ministro Olívio Dutra, velho quadro do PT, atribui a crise "às más companhias", o que irritou Lula. O diabo é que elas podem estar no âmago do próprio PT, na figura do tesoureiro do partido, acusado de pagar mensalidades e bônus anuais "às más companhias", em troca dos votos a favor do governo. Quem o revelou diretamente ao presidente e depois publicamente - tomado de súbito zelo pela ética - foi o deputado Roberto Jefferson, de quem o presidente Lula disse que lhe daria um cheque em branco, tal a confiança que nele depositava. Dificilmente, bom advogado que é, o deputado terá inventado a versão. De resto, o respeitado governador de Goiás revela ter dito o mesmo, antes do deputado, ao presidente da República.

Já não eram somente "as más companhias", edição renovada e ampliada dos "300 picaretas" de outrora, que sujavam o governo. O partido é golpeado no imo. Tesoureiro trata necessariamente com dinheiro, que - repito sempre - Garret chamava de "excremento do diabo". Teria alugado parlamentares (pois que nunca se vendem, é de crer). Se verdade, difícil é aceitar que o tesoureiro, que pertence à cúpula do partido, ousasse receber e distribuir o monturo sem conhecimento superior. Depois de compreensível silêncio (para meditação), concedeu ele entrevista firmemente monitorada pelo presidente do PT. Uma frase do deputado Jefferson - "é mais barato pagar os mercenários que dividir o poder" - pode explicar a dificuldade, se houver, do professor de Matemática, por haver-se especializado em aritmética, especialmente em operações de somar e dividir.

A vestal foi mal cuidada.

Jarbas Passarinho,

ex-presidente da Fundação

Milton Campos, foi

senador pelo Estado do Pará

e ministro de Estado