Título: Reforma do mercado político
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

Uma reforma política também pode ser entendida no contexto de um mercado de prestadores de serviços, no caso, os parlamentares em geral, em particular os deputados. Quando escolhemos deputados, esperamos deles um trabalho adequado como prestadores de serviços de representação. São remunerados e sua atividade incorre em outros custos econômicos, como os prédios e instalações que ocupam e os servidores que utilizam em seu trabalho. Portanto, a atividade absorve recursos dos cidadãos e estes precisam tirar o máximo proveito desses recursos. Assim, quando isso não ocorre, por distorções da representação parlamentar, cabe também uma análise econômica que mostre essas distorções e indique como corrigi-las.

Uma das distorções é o processo de escolha. Quando buscamos um prestador de serviços usuais, como um encanador, temos a liberdade de escolher um para essa finalidade e ele nos responderá pelo seu trabalho. O processo de escolha de deputados, via eleição proporcional, contudo, é claramente defeituoso: há milhares de candidatos que surgem nos poucos meses de campanha, não temos maiores informações sobre eles e assim é praticamente impossível fazer a melhor escolha. Outro problema é que ao optar por um poderemos estar contratando ou elegendo outro, até mesmo um indesejável, pois o voto aos perdedores engrossa os dos partidos, de cujos mais votados saem os eleitos. Imagine-se um encanador indesejado, mas é até pior, pois temos de agüentar o eleito por quatro anos!

Um problema a mais é que nesse sistema o eleito tende a privilegiar a representação de quem votou nele, e quem não o fez é representado ainda mais precariamente. E mais: com votos pulverizados por todo o Estado de origem, os eleitos não têm condições de alcançar sua clientela, nem esta de cobrar serviços.

Portanto, tal como num mercado econômico defeituoso, o de deputados é (des)organizado de tal forma que não leva a uma escolha eficiente, no sentido da melhor possível. Só o voto distrital, com um candidato por partido em cada distrito, elegendo-se apenas um para representar todos os cidadãos da área distrital, resolveria a informação inadequada por excesso de candidatos, a ida do voto para outro candidato, a orfandade representativa e a dificuldade de mostrar trabalho e de ser cobrado por ele.

Certa vez, um cidadão do Canadá, onde o voto é distrital, me disse: "Lá temos o nosso deputado, da mesma forma que temos o nosso médico, o nosso dentista, o nosso advogado e por aí afora." Pergunto ao leitor: quem é o seu deputado? Quando recorreu a ele? Quando ele lhe prestou contas do seu trabalho? Aqui estamos longe desse vínculo mais forte entre o cidadão e seu representante, com o que este fica solto para o que der e vier. Ou mesmo para quem vier e der.

O mercado de deputados também é falho porque eles não têm compromisso com a marca que ostentam. Ela é a dos partidos a que pertencem e estaria a indicar a natureza do serviço que cada partido se propõe a fazer. Ou seja, se contratamos um deputado, ele deve seguir o programa de seu partido, e não o de outro. Quando um deputado muda de partido somos logrados, como um consumidor que compra um produto de marca, mas depois o percebe falso. Impõe-se, assim, a fidelidade partidária durante o período do mandato. Marca é marca, um traço fundamental para diferenciar de outro um bem, serviço ou deputado.

E mais: deputados são produzidos num processo eleitoral que tem custos. Se para arcar com eles recorrem a financiadores de campanha a quem vendem a alma, sua fidelidade ao eleitor fica comprometida. A saída é o eleitor custear diretamente as campanhas, via financiamento público e de forma blindada contra as contribuições "por fora". Ademais, com o dinheiro vindo hoje de financiadores privados, freqüentemente sua origem é o setor público, ao qual financiadores prestam serviços com margem de preço destinada a campanhas eleitorais.

Sabe-se também que no mercado de deputados há uma disputa por cargos públicos que facilitem o acesso a financiadores, de campanha ou não. Uma das funções de ocupantes de alguns desses cargos é a de ordenhar financeiramente os fornecedores estatais, depois de dar-lhes o pasto em que engordam. Para impedir essa distorção do mercado deveria ser drasticamente reduzido o número de cargos de confiança, até porque o financiamento público de campanha tornaria todo esse esquema dispensável, já que seria substituído pela ordenha mecânica, direta e impessoal do próprio contribuinte.

Todo processo produtivo, inclusive de deputados, corre o risco de resultados defeituosos. Assim, uma reforma deveria incluir também o chamado "recall", pelo qual os eleitos que se revelassem defeituosos seriam chamados pelos eleitores para correção, num processo que incluiria também a possibilidade de troca por um novo deputado.

E há ainda os abusos de poder econômico e outras práticas desleais do mercado, como o disseminado uso de assessores parlamentares como cabos eleitorais permanentes por quatro anos, uma forma disfarçada de financiamento público de campanha que prejudica os que pretendem ingressar no mercado, os sem mandato. Tal como outros cargos de confiança, seu número deveria ser drasticamente reduzido e seu uso, restrito à função de assessoria restrita ao trabalho parlamentar.

No mercado parlamentar, o "mensalão", esse novo ícone da bandalheira nacional, revela desvio de função e remuneração indevida. É para lamentar, mas também confirma que entender a atividade dos deputados de uma perspectiva econômica ajuda a identificar seus males e as formas de corrigi-los.

Roberto Macedo, economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), é pesquisador da Fipe-USP e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: roberto@macedo.com