Título: 'ONU está sendo atacada pelos EUA'
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/06/2005, Internacional, p. A16

ENTREVISTA

HANS BLIX, ex-chefe da Comissão de Inspeção da ONU

Para ex-chefe da missão que investigou armas de destruição em massa no Iraque, Washington acha tedioso lidar com a organização AMEAÇA NUCLEAR/IRÃ BRASIL: "Algumas pessoas estão preocupadas com o programa nuclear brasileiro" FUTURO: "No longo prazo, sou otimista. As chances de guerras caem com a interdependência entre as potências"

IRAQUE: "A principal lição é que, quando se tem um diagnóstico ruim, é impossível ter uma operação correta" Eduardo Salgado

Hans Blix se tornou uma figura reconhecida nas ruas das principais cidades do mundo nos meses que antecederam a invasão do Iraque. Na época, esse diplomata sueco com formação em Direito era o chefe da Comissão de Inspeção, Verificação e Monitoramento da ONU, órgão que tinha como função encontrar as armas de destruição em massa que supostamente se encontravam no Iraque. Como diz o embaixador brasileiro Marcos Azambuja, a pressão sofrida por Blix era equivalente a carregar um elefante sobre os ombros. Hoje Blix é presidente da Comissão das Armas de Destruição em Massa, uma ONG, e veio ao Brasil para uma série de palestras em São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro. Confira abaixo a entrevista que Blix concedeu ao Estado.

O programa nuclear brasileiro é motivo de preocupação da comunidade internacional?

Algumas pessoas estão preocupadas. Se um país pode enriquecer até 5%, também tem condições de chegar no nível necessário para uma bomba. O Brasil tomou a decisão política de que não fará a bomba. Está na Constituição, mas as leis podem ser mudadas. O argumento usado pelas autoridades brasileiras para barrar algumas inspeções no ano passado não me convenceu. O roubo de segredos de engenharia não é um perigo iminente.

O senhor acredita que Kofi Annan esteve envolvido em corrupção no programa da ONU Petróleo por Alimentos, que permitiu ao Iraque de Saddam furar o bloqueio econômico e ter acesso a alimentos e medicamentos?

Foi ruim o fato do filho de Annan ter participado do programa, mas isso não o incrimina. Quantos líderes têm filhos que se meteram em encrencas? A própria Margaret Thatcher é um exemplo. O que está acontecendo é uma campanha contra a ONU. A principal meta americana é afetar a imagem da instituição. Todos os membros do Conselho de Segurança, incluindo os EUA e a Grã-Bretanha, sabiam exatamente o que se passava. É verdade que a estrutura montada pelo Conselho de Segurança permitiu que Saddam organizasse fraudes. Não há a menor dúvida de que ele ganhou dinheiro.

O programa nuclear iraniano é mesmo apenas para fins pacíficos?

O comportamento iraniano gera suspeitas. Mantiveram em segredo operações que deveriam ter sido comunicadas. Muita gente concluiu imediatamente que esse era um sinal de que estavam trabalhando para construir armamentos nucleares. Isso é possível, mas não uma certeza. Os iranianos escutam as discussões dos americanos sobre ações para barrar a proliferação nuclear com o uso da violência. Talvez a avaliação dos iranianos seja a de que corriam riscos maiores se contassem a verdade. Por outro lado, é verdade que o Irã tem planos de construir um reator de 40 megawatt. Se forem adiante, será algo um pouco estranho. Dito isso, acho que alguns argumentos usados contra o Irã têm um tom colonial. Dizem que o Irã tem petróleo e, por isso, não precisaria de energia nuclear. Por que não disseram o mesmo para o México?

Na semana passada, a Coréia do Norte anunciou que tem armas nucleares e que está construindo mais...

É plausível que tenham. É interessante o fato de falarem que possuem as armas feitas a partir de plutônio e que estão tentando enriquecer urânio. Se eles de fato têm bombas de plutônio, por que estariam tentando fazer o enriquecimento de urânio? É muito mais fácil fazer uma arma atômica a partir do urânio enriquecido do que do plutônio. Se tudo isso for verdade, é possível que eles estejam tendo dificuldades com a produção de plutônio. Para chegar a um acordo com os vizinhos e o Ocidente, é preciso que os norte-coreanos tenham a certeza de que não serão atacados. Temos que trazê-los para o sistema econômico mundial. Eles começaram a mudar o sistema econômico deles nos últimos anos. Kim Jong-il, o líder norte-coreano, viajou para a China e viu o que está acontecendo lá. O sistema comunista provocou a fome de milhões, mas isso não quer dizer que o regime precise ser combatido pela força. O Iraque mostrou que essa estratégia não é tão simples.

Quais são as principais lições que ficam da sua experiência nos meses que antecederam a invasão do Iraque?

Há várias. A principal é que quando não se tem um diagnóstico bem feito do que está ocorrendo, é impossível ter uma operação correta. Dez meses antes da invasão, os americanos disseram que havia várias indicações da existência de armas de destruição em massa. Os nossos inspetores da ONU disseram que era muito difícil assegurar que elas de fato existiam. Os serviços de inteligência dos EUA e da Grã-Bretanha nos passaram os locais que poderiam esconder armas de destruição em massa. Fomos a todos e não encontramos nada. Tudo isso foi ignorado. Claro que havia outras razões para a guerra.

Quais motivos foram esses?

Paul Wolfowitz, então subsecretário de Defesa, já disse publicamente que havia o desejo de transferir as tropas estacionadas na Arábia Saudita para outro lugar. O clima na Arábia Saudita não era dos melhores para as tropas americanas. Na raiz do problema, no entanto, estava a questão do petróleo.

A indicação de John Bolton, um conhecido linha dura, para ser o embaixador americano na ONU é uma prova de que a administração Bush não abandonou o unilateralismo?

John Bolton é homem ligado a doutrina da supremacia americana. Não reconhece a existência de nenhuma lei internacional e está na extrema-direita do governo Bush. Tem uma posição muito mais contrária ao multilateralismo do que o próprio governo Bush. Daria para argumentar que a indicação dele é sinal de que Bush apóia suas idéias. Mas há outra forma de ver isso. Bolton saiu do Departamento de Estado.

Por que o senhor se diz pouco otimista com relação ao futuro?

Não estamos avançando no desarmamento. Não chegamos em acordo nem para uma agenda internacional. Os Estados Unidos estão fugindo do caminho do desarmamento. Portanto, no curto e médio prazo, sou pessimista. O futuro mais distante é mais brilhante. Aumentou muito a interdependência entre as potências e, com isso, caem as chances de uma guerra. Sem as importações de têxteis da China, os americanos não teriam nem uma camisa para vestir todos os dias. O único ponto pouco claro é como a questão de Taiwan será resolvida.