Título: Depois da queda
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/06/2005, Notas & informações, p. A3

Ouvir e ver, pela televisão, o discurso de despedida do ministro José Dirceu era como estar diante de um boxeador levado às cordas, erguendo os braços acima da cabeça, as mãos juntas em movimentos rítmicos, no clássico gesto de comemoração de uma vitória. Compreende-se que o outrora capitão do time do presidente Lula não proclamasse que as acusações de corrupção que o atingem ¿ e que deram a ambos o pretexto para uma tardia separação de comum acordo ¿ fossem o lance final de um desgaste que começou com o Waldogate, em fevereiro do ano passado, parecia ter sido estancado no segundo semestre, mas recomeçou com ímpeto quando o PT não foi capaz de se unir e de unir a base aliada em torno de um candidato viável à presidência da Câmara, em fevereiro último. Compreende-se também a bravata de que, como deputado, continuará ¿governando o Brasil¿.

Mas é inaceitável que, para tentar escamotear como vitória o seu malogro como arquiteto político do governo, o que o leva de volta ao Congresso, Dirceu tenha precisado apelar para a radicalização do confronto com a oposição, retomando a teoria conspiratória que parecia ter sido arquivada por manifesta inconsistência, segundo a qual as revelações sobre os esquemas de cobrança de propinas em estatais e as denúncias de pagamento de mesadas a integrantes do bloco governista na Câmara eram peças de um golpe em marcha ou para abreviar o mandato do presidente da República ou para derrotá-lo por antecipação na sucessão de 2006.

¿Vou mobilizar o PT para dar combate àqueles que querem interromper o processo político democrático e querem desestabilizar o governo do presidente Lula¿, prometeu o ministro demitido.

Se à declaração de guerra corresponder uma reação de igual intensidade em sentido contrário por parte da oposição ¿ que, em geral, tem se comportado em face da crise e das tentativas palacianas de abafá-la com uma moderação que só a dignifica ¿, Dirceu terá prestado mais um desserviço à estabilidade política indissociável da segurança econômica do País. Com esse tinir de sabre, o homem forte do PT tem fundamentalmente a intenção de devolver ao partido a combatividade desaparecida e de reaproximar do seu núcleo hegemônico, sob o seu comando, a esquerda decepcionada com o pragmatismo de Lula na economia e na política, o que terá como efeito um acirramento das tensões: de um lado, com um governo ainda menos afinado com o velho PT; de outro, com a ampla maioria não petista do Congresso e com a opinião pública para a qual o lancetamento da corrupção não é um disfarce golpista. Se, fora do Planalto, Dirceu continuar a ser, ou vier a ser ainda mais, parte do problema e não da solução, o presidente terá outro motivo para se arrepender de não tê-lo persuadido a afastar-se quando eclodiu o Waldogate.

À época, lembrando que ninguém é insubstituível, o Estado sustentou que essa seria a coisa certa a fazer. Em defesa da permanência do ministro, argumentou-se que a sua saída naquele momento equivaleria a uma confissão de culpa. Mas é o que se pode dizer agora, com motivos redobrados, diante de uma renúncia 10 dias depois da primeira manifestação do deputado Roberto Jefferson sobre o ¿mensalão¿ que o PT teria pago ao PL e ao PP ¿ e 48 horas depois de o mesmo Jefferson provocá-lo, teatralmente, no Conselho de Ética da Câmara: ¿Zé Dirceu, se você não sair daí rápido, você vai fazer réu um homem inocente, o presidente Lula.¿

A saída foi rápida, mas a rearrumação do governo nesta nova fase passará por um inevitável processo de transição, dependendo obviamente e antes de mais nada de quem for o novo titular da Casa Civil e de como ficará o Gabinete reformado, com o propalado encolhimento da parte que nele cabia ao PT e do seu próprio enxugamento. Com isso, aliás, o presidente enfim dá razão a todos quantos criticavam o excesso de petismo e de repartições ministeriais na esfera federal, uma coisa e outra ressaltadas pela escassez de operosidade e de competência no que tinha se transformado numa espécie de cortiço administrativo. Mas, cumpridos os ritos de passagem típicos de situações como essa, todo o tempo será pouco para o governo mostrar serviço, livrar-se das maçãs podres colocadas no seu bojo pelas práticas fisiológicas conduzidas por Dirceu e acertar-se de forma civilizada com o Congresso. Um ano, 6 meses e 2 semanas é o que lhe resta.