Título: Dirceu, da clandestinidade ao poder
Autor: Carlos Marchi, Colaborou: Mariana Caetano
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/06/2005, Nacional, p. A12

Numa passagem do documentário Entreatos, que retratou a campanha vitoriosa de Lula em 2002, o então todo-poderoso assessor José Dirceu relata a Lula uma reunião, num hotel, com políticos do PTB - os mesmos que quase três anos depois iriam derrubá-lo do Palácio do Planalto. "Estava defendendo os seus interesses", explica ele a Lula, que acata a informação e dá a Dirceu, num jogo rápido de expressões faciais, uma procuração pública para cuidar de seu futuro governo. Esse flagrante retratou uma relação umbilical até hoje não suficientemente decifrada por aliados e adversários. No início do governo, Dirceu era bem mais que um ministro, até o cataclisma do escândalo Waldomiro Diniz, em fevereiro de 2004, quando ele começou a deixar de ser o condutor que levava o governo nas costas - e o governo começou a perder seu rumo.

Em novembro de 2002, Lula dizia: "Dirceu é dono do espaço que quiser ocupar". No começo de 2003, Dirceu já era tratado como "Golbery do Lula", "trator", "homem-forte". A cerimônia de sua posse, no dia 2 de janeiro de 2003, foi tão concorrida que a fila de cumprimentos teve espera de mais de uma hora. Logo depois, Lula assinou o primeiro decreto para ampliar os seus poderes.

Dentro do governo, com tanto poder, Dirceu passou a exercitar um pragmatismo flexível demais para um esquerdista. De um lado, manobrou o timão da crítica à política econômica conduzida por seu antípoda petista, o ministro Antônio Palocci; com isso, assumiu a liderança do grupo "desenvolvimentista" do governo, o que tinha um significado atraente dentro do PT e à vista da sociedade.

Na outra face da moeda, levou o governo a praticar uma política de alianças extremamente flexível, para dizer o menos. Levou para dentro do palácio e do governo os partidos mais fisiológicos, à revelia dos segmentos mais radicais do PT, que não estavam preparados para aceitar mudança tão brusca. Quando vieram as críticas mais ardorosas, manobrou com frieza a guilhotina e decepou os radicais.

Cinco meses depois da posse do governo Lula, ele já era citado como principal responsável pelo esvaziamento dos partidos de oposição e o conseqüente inchaço dos partidos que aderiram à base aliada do governo. Até então, num recorde inédito, 69 parlamentares tinham mudado de partido - de PSDB, PFL e PDT, foram de mala e cuia para PL, PP e PTB. Tudo funcionou bem até o escândalo Waldomiro.

A partir daí, nunca mais conseguiu conter a hemorragia que teimava em espirrar de seus flancos. Bem que ele tentou sublimar o episódio - que lhe ficaria tatuado na pele. Várias vezes produziu frases de efeito para isentar o governo. "É um governo que não rouba e não deixa roubar" - foi sua preferida. "Uma das provas da mudança do País é a inexistência de casos de corrupção envolvendo o governo", disse, em abril de 2004.

Primeiro, Lula foi obrigado a retirá-lo da coordenação política e deu-lhe o cargo de "gerentão" do governo. Ele consumiria os meses seguintes tentando esvaziar Aldo Rebelo, que herdou a coordenação política, sem nunca se acomodar com o cargo de gerente.

Dirceu sempre foi implacável com quem não lhe tomou a bênção. Assim é que foi libertado das prisões da ditadura em 1969, em troca do embaixador dos EUA, Charles Elbrick, seqüestrado por um comando esquerdista do qual participou o então jornalista Fernando Gabeira. Muito mais tarde, quando os dois partilhavam o mesmo PT, Dirceu não suportou a autonomia ideológica de Gabeira: o PT ficou pequeno para os dois. No PT, Dirceu não tem meias medidas: companheiros e ex-companheiros amam-no ou odeiam-no, ambos os lados sem rodeios e sem meias palavras.

DUAS CARAS

Nascido José Dirceu de Oliveira e Silva, em 1946, o ex-chefe da Casa Civil já se chamou Carlos Henrique Gouveia de Melo, nome que adotou na clandestinidade que a ditadura lhe impôs, quando viveu em Cruzeiro do Oeste (PR). Antes disso, foi preso, em outubro de 1968, com centenas de lideranças estudantis que participariam do congresso de Ibiúna, onde ele seria eleito presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE).

Há quem diga que a prisão em massa foi resultado de muita auto-suficiência e pouca estratégia. No exílio, Dirceu treinou táticas de guerrilha em Cuba. Mas na volta ao Brasil de seu grupo, o Molipo, num episódio obscuro e mal explicado até hoje, resultaram mortos praticamente todos os militantes.

Em Havana, Dirceu fez uma operação plástica para mudar a face. De cara nova, foi viver em Cruzeiro do Oeste e se casou com Clara Becker, a quem não relatou o passado. Com a ajuda dela, montou uma butique masculina. Tão logo a anistia foi decretada, comunicou à mulher sua verdadeira identidade e imediatamente a deixou, voltando a Cuba, de onde voltou "oficialmente" a São Paulo.

Teve participação destacada na CPI que levou ao impeachment de Fernando Collor, em 1992, quando montou uma rede de investigação que refez todas as rotas das aeronaves de Paulo César Farias, o PC, e identificou os pousos e decolagens em paraísos fiscais. O grupo, que era integrado por um obscuro personagem chamado Waldomiro Diniz, também descobriu depósitos bancários que ajudaram a incriminar Collor e PC.

Presidiu o PT entre 1995 e fins de 2002. Nesse tempo, consolidou a hegemonia do grupo político Campo Majoritário (antiga Articulação, à qual pertecem ele, Lula, José Genoino e outros). Seu outro importante trabalho político foi planejar e executar , na campanha eleitoral de 2002, a aproximação do PT com o PL, que blindaria Lula da demonização ideológica.

Depois de abraçar o pragmatismo franco e aberto, Dirceu foi cada vez mais longe. Num primeiro momento, chegou a defender a aproximação com o ex-governador Orestes Quércia (PMDB), a quem no passado maculado com severas acusações de corrupção. Já no governo, buscou os partidos mais conservadores e fisiológicos para construir a maioria parlamentar de Lula. Foi assim que pavimentou o começo do fim.