Título: Os refugiados, a ONU e Guterres
Autor: Celso Lafer
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

Refugiados, de acordo com a Convenção Internacional de 1951 e o seu Protocolo de 1966, ambos promulgados no Brasil, são os que, temendo ser perseguidos por motivo de raça, nacionalidade, grupo social ou opinião política, se encontram fora do país de sua nacionalidade e sem possibilidade de se valer da proteção jurídico-diplomática do seu país. Enquadram-se, igualmente, na categoria de refugiados os que, não tendo nacionalidade, se encontram fora do país no qual tinham sua residência habitual e, em função das razões do temor acima mencionado, a ele não querem ou não podem retornar. Os refugiados integram a triste categoria dos deslocados no mundo. São os indesejáveis que não têm para onde ir, posto que se viram implícita ou explicitamente expelidos da trindade Estado-povo-território.

O aparecimento em larga escala de refugiados se deu depois da 1ª Guerra Mundial. Uma das razões foi a dissociação entre os direitos humanos e os direitos dos povos que a desagregação dos impérios multinacionais - o austro-húngaro, o czarista e o otomano - magnificou com o tema das minorias lingüísticas, étnicas e religiosas em Estados nacionais. Outro fator foram as restrições à livre circulação das pessoas, seja por motivações econômicas, seja pelo ímpeto da xenofobia, que, em conjunto, inviabilizaram grandes correntes migratórias. Também cabe mencionar, no plano político, o cancelamento em massa da nacionalidade pelo arbítrio totalitário das perseguições ideológicas promovidas pela União Soviética e pela Alemanha nazista.

Teve início em 1919 o esforço de criar uma tutela internacional para os que não encontravam aceitação apropriada em nenhum lugar no mundo e se viram privados, como observou Hannah Arendt, do "direito a ter direitos". Entretanto, a eficácia destas iniciativas pioneiras foi relativa em função da debilidade política da Sociedade das Nações. O tema foi retomado no pós-2ª Guerra Mundial pela ONU, que criou, em 1950, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur), cujo objetivo inicial foi o assentamento de cerca de 1,2 milhão de pessoas que se viram deslocadas pelas turbulências políticas da Europa.

Com o tempo, o mandato e as funções do Acnur se foram ampliando, pois o número de refugiados se foi multiplicando. Converteu-se num persistente tema da ordem mundial pelas conseqüências das guerras localizadas, dos desdobramentos do processo de descolonização, das tensões étnicas, dos fundamentalismos, dos conflitos bélicos internos, da xenofobia, das catástrofes naturais, da fome, das crises econômicas. Estima-se que, nas últimas cinco décadas, cerca de 50 milhões de pessoas tenham sido assistidas pelo Acnur, que, sediado em Genebra, hoje atua em 115 países. Atualmente é de cerca de 17 milhões o número de refugiados e assemelhados espalhados por todas as regiões geográficas do mundo.

O Acnur pode ser considerado, para recorrer à terminologia de Luigi Ferrajoli, uma das poucas instituições de garantia que operam no plano mundial. Exerce, em relação aos deslocados no mundo, uma função internacional de proteção diplomática e consular que os refugiados não têm, substituindo, assim, o vazio jurídico da carência da ação estatal. Atua como uma instância internacional própria, que exerce os seus bons ofícios junto aos Estados, para criar oportunidades de ajustamento e acomodação dos refugiados. Provê assistência humanitária - água, comida, cuidados médicos - para os refugiados e assemelhados que se encontram em situação de vulnerabilidade crítica.

O Acnur tem uma relevante folha de serviços prestados à humanidade e o novo alto comissário, António Guterres, acabou de assumir, em 15/6, as suas funções. No processo da sua indicação para o cargo, disputado por personalidades de relevo no cenário internacional, o antigo primeiro-ministro português, que na sua gestão (1996-2002) impulsionou e aprofundou os laços econômicos e políticos que unem o Brasil e Portugal, teve o apoio do governo brasileiro. Não lhe faltaram, também, no processo de sua indicação por Kofi Annan, o discreto, mas efetivo respaldo de Fernando Henrique Cardoso, o endosso diplomático de países como a Rússia, a China e o México e os méritos derivados da sua presidência da Internacional Socialista.

Foram aspectos relevantes para a indicação de Guterres, confirmada pela Assembléia-Geral da ONU em 27/5, segundo declarações do chefe do gabinete de Kofi Annan, sua compreensão das características do sistema político internacional, desde a migração à economia, que continuam dando origem aos refugiados; a importância de terem os refugiados e assemelhados um defensor, como ele, com peso político e competência, que saiba, por isso mesmo, falar com eficácia, mereça o respeito dos meios de informação e tenha aptidões para construir em todos os quadrantes uma rede de contactos e apoios. Além do mais, como observou o chanceler português Diogo Freitas do Amaral em carta datada de 13/5/2005 à secretária de Estado norte-americana Condoleezza Rice, defendendo a candidatura de Guterres, tem ele qualidades indispensáveis para o cargo, pois é "um homem compassivo" e "um político determinado" - como mostrou na crise de Timor em 1999 e na guerra do Kosovo -, com capacidade de interagir de forma positiva e dinâmica com muitas culturas.

É sombrio e permeado por tensões o cenário internacional. Neste contexto, a posse de Guterres no Acnur é um dos poucos sinais positivos. Com efeito, por suas qualidades e seu sentido de missão, saberá trabalhar para dar efetividade ao kantiano princípio de hospitalidade universal, contribuindo para que os refugiados se possam sentir um pouco mais à vontade e em casa num mundo comum.