Título: Os 'pingos nos is'
Autor: Sérgio Fausto
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

Logo após o surgimento do caso Waldomiro Diniz, seu assessor direto, o então ministro José Dirceu afirmou em tom desafiador que não se dobraria às pressões para que se afastasse do cargo e que poria "os pingos nos is". Fixou até prazo: 30 dias. Passado mais de um ano do episódio, os pingos continuaram fora de lugar e o deputado José Dirceu, para o bem da estabilidade política do País, foi embora do governo. A Casa Civil da Presidência da República é uma instituição do Estado brasileiro. É um alívio assistir à saída de quem, enquanto lá esteve, se comportou antes como chefe partidário do que como ministro de Estado. Mais que lavar a honra de pessoas ou partidos, ao País importa agora reformar as práticas que estão na raiz da crise que levou à demissão de José Dirceu, a começar por uma redução drástica dos cargos de livre provimento do Executivo, iniciativa que está ao alcance de o governo tomar. Assim como ao seu alcance está retroceder, de imediato e sem deixar margem à dúvida, na tentativa de controlar o Estado brasileiro para se perpetuar no poder.

Chegamos ao ponto em que estamos porque o atual governo se recusou a dar continuidade à herança (maldita?) recebida do governo anterior no difícil equilíbrio entre a preservação do interesse público e a obtenção de apoios partidários.

Suely Caldas, em artigo no domingo passado neste jornal, recordou que as privatizações realizadas nas gestões de FHC resultaram na eliminação de pelo menos 2 mil cargos de nomeação política nas antigas empresas estatais. O exemplo maior é o das empresas estaduais do sistema Telebrás, em que a presidência e as principais diretorias eram disputadas a tapa, por razões nem remotamente relacionadas com a vontade de melhorar a eficiência do sistema de telefonia. Mas essa é apenas a parte mais visível da história.

A verdade é que a área econômica toda foi preservada da repartição política de cargos no governo FHC. Pedro Malan, sempre com respaldo do presidente, resistiu a reiteradas investidas para que os Bancos do Nordeste e da Amazônia saíssem da alçada do Ministério da Fazenda. Na Caixa Econômica Federal, extinguiram-se várias superintendências locais, nas quais os interesses clientelistas incidiam, provocando a ira de muitos parlamentares da "base aliada". O estatuto do banco foi alterado para preservar a instituição do risco de eventuais atos de gestão politicamente orientados. Também no Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) se promoveu reforma estatutária para fortalecer os Conselhos de Administração e Fiscal e estabelecer regras transparentes quanto à participação do setor privado naquela empresa de economia mista.

A Petrobrás foi transformada numa companhia pública. Reconheceram-se os seus créditos junto ao Tesouro por subsídios oferecidos na compra de álcool e se estabeleceu uma regra clara de pagamento. Aumentou-se a participação de acionistas minoritários em seu capital, com a venda competitiva de ações excedentes ao controle, incorporaram-se representantes do setor privado em seu Conselho de Administração e se adotaram procedimentos de governança corporativa requeridos por empresas com ações no chamado nível 1 da Bovespa. Medidas semelhantes se aplicaram ao Banco do Brasil.

Não foi diferente na área social. A LBA, que se havia transformado ao longo dos anos numa máquina de clientelismo político, com orçamento superior ao do MEC, foi extinta. O governo tomou medidas para institucionalizar os programas de assistência social, que passaram a orientar-se por critérios objetivos, definidos em lei, e a transferir benefícios de maneira automática diretamente aos beneficiários. O MEC deixou de ser parte do tesouro oferecido à partilha partidária. Paulo Renato Souza ficou oito anos à frente da pasta, ao passo que seus antecessores, com poucas exceções, mal chegavam a ficar dois anos. Reorganizou-se a Fundação Nacional para o Desenvolvimento Escolar (FNDE), antes um balcão de negócios para a construção de escolas, alvo de empreiteiras e parlamentares. Completou-se a descentralização da compra da merenda escolar, dando transparência à transferência de recursos para esse fim. Implantou-se o Fundef, contra o voto do PT, vinculando os recursos públicos para a educação fundamental ao número de alunos na rede pública. Na área da saúde, institucionalizou-se o SUS, avançando na atribuição plena dos serviços aos municípios e nas transferências de recursos fundo a fundo. Não houve discriminação de natureza política. Técnicos qualificados ligados ao PT assumiram postos de direção no ministério, sob o comando de José Serra.

Quer dizer que não houve negociação política na composição do governo anterior? Claro que houve, como é normal em qualquer regime democrático e imprescindível num sistema político como o nosso. Mas as áreas estratégicas do governo não foram submetidas às necessidades de composição de alianças. Não houve casos de corrupção? Claro que houve. Mas, diante de provas, o governo tomou as medidas necessárias: extinguiu a Sudam e a Sudene, ambas recriadas neste governo por tolas razões ideológicas, e acabou com o DNER, substituindo-o por uma agência regulatória da área de transportes.

O que se espera do governo atual é que, diante da gravidade dos fatos em pauta, retome e aprofunde as medidas de reforma e saneamento do Estado brasileiro que vinham sendo implementadas. Isso, sim, ajudará a restabelecer o merecido prestígio do PT como agente da democratização política e social. O governo e o partido têm reserva moral e técnica para tanto. Resta saber se, em lugar de bravatas e declarações de guerra, terão a grandeza de tomar o caminho que interessa ao Brasil.