Título: A herança de Dirceu
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/06/2005, Notas & Informações, p. A3
Foi a política, primeiro, e as suspeitas de envolvimento em atos de corrupção, depois, que derrubaram o primeiro-ministro do governo Lula. Nada mais natural, portanto, que a queda de José Dirceu tenha sido examinada primordialmente sob esse duplo ângulo: o do fracasso em assegurar a hegemonia do Planalto no Congresso e o do seu flanco exposto pelos efeitos do loteamento da máquina e pelo "mensalão" - não bastasse o cadáver insepulto das maracutaias do seu ímprobo protegido Waldomiro Diniz. O que não se pode perder de vista, contudo, é uma dimensão tão ou mais grave da atuação do agora ex-ministro - a sua "herança maldita", como é o caso de parafrasear, desta vez com propriedade, as acusações petistas ao governo anterior, para justificar a manutenção das suas diretrizes econômicas (quando não para debitar-lhe os retrocessos de gestão impossíveis de camuflar).
Essa herança foi a devastação que o obsessivo controlador instalado na Casa Civil produziu na administração federal, tanto a direta quanto a indireta.
A ofuscante sede de poder do ministro - ele afirmou certa vez, mais a sério do que brincando, que as suas atribuições poderiam ser divididas, sim, desde que "entre o José e o Dirceu" - o estimulou a se dar ares de homem de 7 instrumentos. Passados dois anos e meio de sua investidura, está claro que ele não tocava nenhum.
Daí o descalabro em dobro: de uma parte, um presidente entregue a propagar mundo afora o evangelho de uma fantasiosa "nova geografia" e a proclamar, no País, os não menos imaginários êxitos sem precedentes de seu governo; de outra parte, um aprendiz de feiticeiro centralizador, obcecado em manipular a estrutura administrativa ao sabor dos seus interesses.
Tanto isso é verdade que o único setor do governo em que não pôde interferir - o da economia - é, a rigor, o único que funciona. A correção desse acúmulo de erros depende, naturalmente, da corajosa reforma política que o presidente se prepara para consumar, com a despetização e o emagrecimento do corpanzil ministerial.
É torcer para que os novos integrantes do primeiro escalão, além dos esperados atributos de praxe, saibam devolver às engrenagens afetadas a capacidade de operar com eficiência. Mas esse é apenas o recomeço. Quando não soterram aqueles sobre os quais se abatem, as crises lhes proporcionam meios escassos em condições de normalidade para dar o salto evolutivo de que falam os cientistas.
Esses meios estão no programa estratégico de médio prazo - que será tão menos longo quanto menos tardar a sua partida - em preparo na área econômica. Não há exagero em dizer que, por seu alcance, propelirá o presidente Lula para a história, se conseguir implementá-lo até o fim do segundo mandato que ambiciona. A sua face mais ostensiva é fiscal - embora o seu efeito principal, se tiver êxito, seja uma reforma administrativa. Trata-se da meta de reduzir gradualmente, até zerar, o déficit nominal. Concomitantemente, o princípio das metas de inflação será aplicado ao custeio do governo, visando à sua redução progressiva.
As inovações viriam no bojo de um projeto de emenda constitucional que desamarraria as mãos do governo na execução orçamentária, mediante a elevação do nível dos dispêndios não carimbados de antemão, hoje na casa de 20% do total arrecadado pela União. Pode-se apenas imaginar o que essa maior desvinculação de receitas poderá render nas mãos de um governo competente, honesto e comprometido com a responsabilidade fiscal. Ao mesmo tempo - e eis aí a sua auspiciosa intersecção com o objetivo de reconstruir a máquina pública devastada pelo "aparelhamento" petista regido por José Dirceu -, o programa pretende reduzir a níveis civilizados o número de cargos de confiança que são sempre preenchidos por indicações políticas - que somam hoje, como se sabe, extravagantes 20 mil funções. Combinada com a redução do número de ministérios e de secretarias cujos titulares gozam de status ministerial, essa profissionalização não só incrementará a qualidade da administração, como também suprimirá muitas das incontáveis engrenagens da corrupção.
Com Dirceu no Planalto, nem se poderia sonhar com isso.