Título: Título atrapalha professor doutor nas universidades particulares
Autor: Renata Cafardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/06/2005, Vida&, p. A20

Um contra-senso toma conta do ensino superior privado brasileiro. Quanto mais preparado o professor, mais risco ele tem de ser preterido. Há alguns meses, profissionais com formação de doutor vêm sendo demitidos das universidades e faculdades particulares e amargam uma quase impossível recolocação que leve em conta o seu título. O Estado ouviu dezenas de professores dispensados na capital paulista e no interior, que relatam histórias semelhantes em diferentes instituições. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, estipula que as universidades devem ter, pelo menos, um terço de seus professores com mestrado ou doutorado. Essa exigência, que não especifica a quantidade em cada titulação, deve mudar com uma eventual aprovação da nova lei de Reforma Universitária. Mas, por enquanto, a conjunção "ou" continua sendo um problema. Os doutores, que ganham mais, podem ser trocados por mestres se assim a instituição desejar.

"Ficou óbvio que passei a custar caro", diz I.D., demitido no fim do ano passado da Faculdade Anchieta quando estava perto de terminar o doutorado na Universidade de São Paulo (USP). "Quando entreguei o título de mestre na faculdade, já me viraram a cara." I.D. até agora não conseguiu um novo emprego. A faculdade informou que não está demitindo doutores. Todos os professores ouvidos pelo Estado preferiram não ter seu nomes publicados.

A situação de S.S. é parecida. Com título de doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ela conta que ajudou a formular o projeto pedagógico de Psicologia na Universidade Mackenzie. "Reorganizamos o curso, que era muito ruim, o MEC fez a avaliação e depois fui dispensada." O Mackenzie nega ter demitido qualquer funcionário em virtude da titulação e, segundo o reitor, Manassés Claudino Fonteles, novos doutores foram contratados neste ano.

O ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza, hoje consultor, diz que tem ouvido ultimamente histórias semelhantes à contada por S.S. Nos tempos do Provão, que começou em 1996 e acabou em 2004, era liberada a cada ano a relação de mestres e doutores dos cursos participantes do exame. Na primeira divulgação de seu substituto, o Enade, não ocorreu o mesmo. "Além disso, essa informação tinha de bater com a relação que deveria estar nas secretarias das instituições", diz. "Havia um controle social."

Já o controle oficial, do Ministério da Educação (MEC), ocorria e continua ocorrendo com periodicidade que varia de um a cinco anos. Instituições que já têm reconhecimento para seus cursos passam por novas verificações quando esse reconhecimento vence. O prazo varia conforme o curso. O ex-ministro conta o que ouviu de donos de universidades: "Se meu curso já tem o reconhecimento e o MEC vai demorar a vir de novo, para que vou manter o doutor se o mestre é mais barato?"

Segundo o Sindicato dos Professores de São Paulo (Sinpro), não há piso salarial para a categoria do ensino superior, mas um professor doutor recebe em média R$ 45 por hora de aula, enquanto o mestre recebe R$ 40 e o especialista (apenas com especialização), R$ 34. "As demissões estão ocorrendo, há substituição por pessoas que vão ganhar menos e não necessariamente são menos qualificadas", diz o presidente do Sinpro, Luiz Antonio Barbagli. Ou seja, há doutor sendo contratado para ganhar como mestre ou mesmo como especialista.

H.B. tem pós-doutorado pela USP e foi demitido há um ano do Mackenzie, onde ainda ganhava como mestre. "Já mandei entre 60 e 70 currículos e não tive nenhuma resposta", conta. Marta (nome fictício) aceitou ser contratada na Universidade Ibirapuera (Unib) para ganhar R$ 37 por hora, enquanto outros colegas doutores recebiam R$ 50 na mesma instituição.

Segundo conta a professora doutora do curso de Psicologia L.B., a Unib chamou seus funcionários em abril para apresentar as condições para continuarem ou não na instituição. Ela diz que foi oferecida demissão voluntária ou um acordo em que o professor aceita ser demitido, mas fica quatro meses trabalhando sem carteira assinada e depois é recontratado por um salário inferior. L.B. passaria a receber cerca de R$ 25 por hora de aula. "Querem transformar o professor em mão-de-obra barata", diz ela, que não aceitará a condição e deixará o emprego.

A universidade informou que passa por dificuldades financeiras por causa da queda no número de alunos. Disse ainda que as propostas fazem parte apenas de uma pesquisa com os professores e nenhuma decisão ainda foi tomada.

No início do ano, chegaram e-mails à Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes/MEC) que denunciavam a demissão de dezenas de doutores na Universidade Paulista (Unip). "Ser doutor hoje já coloca o professor na fila da demissão em algumas instituições", diz Paulo, que tem doutorado pela USP e foi demitido da Unip de Ribeirão Preto. Procurada, a universidade não se pronunciou.

CRESCIMENTO

O Brasil tem hoje 254.153 professores universitários, segundo o MEC. Mais de 54 mil são doutores e 89 mil, mestres. Os especialistas são 74 mil e o restante tem apenas a graduação. Em 1994, os mestres e doutores representavam 25% dos professores; hoje passam dos 50%.

O número de professores titulados acompanhou o salto do mercado do ensino superior privado na gestão Paulo Renato. Em dez anos, cresceu em 60% o número de instituições. Atraídos por altos salários, doutores migraram das universidades públicas para as privadas. "Hoje não é mais necessário pagar R$ 12 mil por um doutor", diz o presidente do Sindicato dos Mantenedores do Ensino Superior do Estado de São Paulo (Semesp), Hermes Ferreira Figueiredo. Para ele, após a "caça aos doutores" no início dos anos 1990, o mercado "está se acomodando". Ele nega que haja demissão em massa de doutores, pois as instituições convivem com a expectativa da aprovação da Reforma Universitária. O projeto do governo prevê que 50% dos professores das universidades sejam mestres ou doutores, mas a metade obrigatoriamente deverá ser de doutores.