Título: Na Índia, mulheres levam a culpa por estupros
Autor: Amelia Gentleman
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/06/2005, Internacional, p. A19

As fronteiras morais estão mudando depressa nas cidades da Índia na medida que o país sofre as conseqüências de uma revolução econômica que está introduzindo novos valores culturais. A sociedade urbana indiana está entre duas eras. Enquanto a vasta maioria da sociedade fora das metrópoles continua comprometida com valores rurais tradicionais, a juventude das grandes cidades vive às voltas com uma crise de identidade. Tenta escolher um tipo de estilo de vida. Está entre o recato da geração de seus pais e uma cultura moderna de permissividade e emancipação. Padrões estrangeiros de comportamento social são exibidos todas as noites na televisão. "Sex and the City" virou um hit em casas onde a a simples menção a sexo continua sendo um tabu absoluto. Pelos padrões dos campi universitários ocidentais, os guarda-roupas das estudantes de Nova Délhi dificilmente seriam descritos como provocadores. As que optam por estilos ocidentais vão para um sensato visual de catálogo de Gap em vez das fantasias a Britney Spears. Uma pesquisa recente realizada pelo períodico India Today revela que 71% das mulheres indianas se sentem incapazes de vestir o que querem por causa das restrições culturais, e entre as estudantes universitárias há também um certo grau de autocensura. Nada de roupas apertadas, nada de decotes vistosos, e certamente nada de umbigos de fora.

As estudantes universitárias de Nova Délhi estão se deparando com novas restrições a seu padrão de vestuário em meio a uma crescente histeria causada por uma série de estupros violentos na capital. Escolher o que vestir tornou-se menos um imperativo da moda que um dilema para as estudantes da cidade depois que autoridades universitárias recomendaram que as moças substituíssem os vestidos curtos pelas roupas mais recatadas para protegê-las de abusos sexuais. Muitas jovens ficaram irritadas com a sugestão de que seus guarda-roupas tenham alguma culpa pelo recente surto de violência. O escritório do vice-reitor de uma importante faculdade de Délhi foi ocupado por estudantes furiosas durante o fim de semana depois que alguns jornais noticiaram que ele havia recomendado a introdução de um código de vestuário proibindo "vestidos reveladores".

A corrente obsessão com o vestuário das mulheres em Délhi tem suas raízes num debate mais amplo sobre a quem responsabilizar pelo problema da violência contra mulheres na Índia. Em meados de maio, uma estudante universitária de Nova Délhi foi seqüestrada quando ia para casa com um amigo de madrugada. Embora o amigo tivesse alertado a polícia imediatamente, esta não reagiu com presteza e a vítima foi mantida por quatro horas e violentada por seus atacantes que a largarem no mesmo ponto onde a seqüestraram bem na frente da delegacia da Divisão de Crimes contra Mulheres da Polícia de Nova Délhi. Inicialmente circulou na mídia uma crítica generalizada à incompetência policial, mas esta foi rapidamente seguida por especulações sobre o papel do vestuário feminino em provocar o ataque, e comentários desaprovadores sobre a sua saída à rua numa "hora tão imprópria".

Quando uma garota de 16 anos foi estuprada em Bombaim (atual Mumbai) por um policial no começo de maio, o extremista, mas influente Partido Shiv Sena declarou que as mulheres tinham a responsabilidade de se vestir corretamente. Foi mais longe ao dizer que "calças de cintura baixa e minissaias" eram responsáveis por uma ruptura da cultura indiana.

"Os pais deveriam observar que tipo de roupas as moças estão usando quando elas saem de casa," disse a ministra em exercício para assuntos femininos, Kanti Singh. Esses ataques provocaram a ira das feministas. "Esse é um problema masculino," diz Chitra Srivastava, professora de psicologia uma universidade privada de Nova Délhi e chefe de uma associação feminista.

Shobhaa De, autora de um guia de auto-ajuda sobre os relacionamentos modernos na Índia, não vê nada de errado em introduzir um código de vestuário pragmático. " As garotas não devem usar saias curtas, mangas curtas ou mesmo a cor vermelha", disse ela.

Diz Narinder Tokas, presidente do grêmio estudantil da Universidade de Délhi: "Essa é uma atitude muito obsoleta. Os estudante universitários de Délhi têm atitudes ocidentalizadas e não é correto obrigá-los a usar vestuário tradicional".