Título: Boêmios 'canalhas' enganaram ex-ditador
Autor: Roberto Lameirinhas
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/06/2005, Internacional, p. A16

SANTIAGO - Um dos mais interessantes restaurantes de Santiago está longe dos padrões internacionais de gastronomia. Trata-se de um botequim escondido num beco a três quadras do Palácio de La Moneda, a sede do governo chileno. O que falta em requinte e sofisticação sobra em tradição e história. El Rincón de los Canallas (O Recanto dos Canalhas) foi aberto em 1980, em plena ditadura de Augusto Pinochet, como um reduto clandestino dos boêmios de Santiago. Vigorava na época um rigoroso toque de recolher e o Rincón era o único lugar aberto de madrugada - clandestinamente, é claro. Jornalistas e radialistas que trabalhavam até tarde da noite iam para lá para comer e, principalmente, beber. Após a entrada, os clientes só poderiam sair quando o dia amanhecesse, em obediência ao toque de recolher. A única regra da casa nos anos de chumbo: política era assunto proibido.

É bem possível que simpatizantes do regime pinochetista tenham compartilhado noitadas regadas a muito vinho com ativistas pró-democracia. Pelo menos é assim que gosta de pensar o dono do local, Victor Paimenal Martínez. O caráter de ecumenismo político do local pode ter levado a temida Direção de Inteligência Nacional - Dina, a implacável polícia da ditadura - a fazer vista grossa ao funcionamento da casa.

Incrustado numa escura e degradada área da cidade onde hoje proliferam casas de strip-tease e clubes nada familiares, o Rincón está longe de centros residenciais e, desde sua fundação, a pesada porta de ferro que dá acesso ao restaurante é mantida permanentemente fechada.

Para entrar, é preciso tocar a campainha e responder a uma senha. "És um canalha?", grita uma voz atrás do portão. "Somos todos", deve responder o cliente que pretende entrar.

A restrição sobre as conversas políticas não existe mais desde os últimos meses da ditadura e El Rincón de los Canallas tornou-se um reduto da esquerda. Hoje, logo ao entrar, o cliente dá de cara com um empoeirado pôster no qual aparecem abraçados o ex-presidente Salvador Allende e o poeta Pablo Neruda. Em outro local, uma foto do cantor e compositor Víctor Jara, uma das vítimas da ditadura.

Em todas as paredes proliferam milhares de igualmente empoeiradas mensagens de autoproclamados "canalhas". Chama a atenção uma mensagem, deixada no ano passado, pelo ex-prefeito de Santiago e candidato às eleições presidenciais de dezembro Joaquín Lavín - que já foi considerado o herdeiro político de Pinochet.

Entre mensagens de brasileiros, algumas trazem a estrela do Partido dos Trabalhadores e outras têm distintivos de clubes de futebol. As velhas mesas são servidas por apenas duas senhoras, parentes de Paimenal, que tratam todos os clientes por "canalha". "Que vão querer, canalhas?", perguntam. O cardápio é limitado: carne de boi, de porco, presunto ou lingüiça. Todos os pratos têm nomes que se referem à esquerda: "rebelde", "guerrilheiro", etc.