Título: Fraude sepulta prestígio de Pinochet
Autor: Roberto Lameirinhas
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/06/2005, Internacional, p. A16

SANTIAGO - A eleição presidencial de 11 de dezembro do Chile estará livre da sombra do ex-ditador Augusto Pinochet Ugarte. Desde a redemocratização do país, em 1990, Pinochet esteve no centro de todas as disputas políticas no país. Hoje, aos 89 anos, o general que foi um dos mais sanguinários déspotas do continente é um cadáver político. E não só por causa das violações de direitos humanos, pelas quais Pinochet tem sido sistematicamente processado no Chile desde 2000. Tampouco é em função da sua saúde frágil. A causa do sepultamento político de Pinochet são as denúncias de uma milionária fraude fiscal, que nem mesmo os pinochetistas mais convictos demonstram disposição para perdoar. A pá de cal no prestígio político do ex-ditador foi lançada no ano passado. Foi nessa época que surgiram os primeiros indícios de que ele transferiu vários milhões de dólares para contas correntes que foram abertas e eram movimentadas no exterior com o uso de documentos pessoais falsificados. Investigadores chilenos apuraram um desvio de mais de US$ 8 milhões. No início do ano, foram encontradas novas contas e o montante está em quase US$ 15 milhões. Entre a comunidade política e financeira de Santiago, há quem estime que o valor total da fraude possa chegar a US$ 50 milhões.

"A prisão de Pinochet na Inglaterra (em 1998) mobilizou seus seguidores, que viram no processo que originou a detenção (presidido pelo juiz espanhol Baltasar Garzón) uma intromissão externa nos assuntos do Chile", disse ao Estado o professor de ciências políticas da Universidade Andrés Bello, José Felipe Pérez. A campanha para as eleições de 2001 foi contaminada por essa polêmica. O então candidato socialista Ricardo Lagos evitava ferir a sensibilidade dos conservadores ao mesmo tempo em que seu rival, Joaquín Lavín, até então considerado o líder da juventude pinochetista, se esquivava de assumir a defesa de seu mentor político. "Hoje, todos os antigos seguidores do general - políticos, empresários e militares - procuram afastar-se dele. Eles compartilham a idéia mais ou menos generalizada de que os crimes da ditadura podem ser justificados, com os mais diversos e polêmicos argumentos, mas não há como compactuar com a corrupção."

Não foi feita até agora nenhuma pesquisa para quantificar milimetricamente a influência que Pinochet ainda exerce sobre a política chilena, se é que ainda mantém algum capital político residual. "É algo tão evidente que dispensa uma pesquisa formal, nenhum instituto pensou em perder seu tempo para apurar isso", afirmou um jornalista de um dos principais diários do Chile.

As evidências da derrocada, no entanto, são claras. O principal indicador da queda de prestígio do general é o caixa da Fundação Pinochet, um think tank criado logo depois da saída dele do poder para manter seu legado ideológico. Segundo a imprensa chilena, o escândalo de fraude fiscal levou os empresários a cancelar as gordas doações anuais para a manutenção da instituição.

O Estado procurou responsáveis pela fundação em Santiago. Por telefone, um funcionário disse, sem se identificar, que a Fundação Pinochet "não tinha nada a declarar à imprensa estrangeira". Diante da insistência da reportagem, ele disse que "o general nunca buscou influência política depois de ter deixado o poder e influenciar eleições não é uma meta da fundação".

Não é bem assim. Desde que deixou a presidência, Pinochet sempre procurou reter a maior fatia de poder possível, explica ao Estado o professor de ciências política da Universidade Católica de Santiago Guillermo Holzman. Primeiro, manteve-se no posto de comandante do Exército. Deixou o cargo ao completar 80 anos, para assumir uma cadeira como senador vitalício - um privilégio concedido a ex-presidentes da república pela Constituição que ele mesmo ditou. Os dois cargos davam a Pinochet o privilégio da imunidade judicial.

Durante os 503 dias que passou à disposição da Justiça na Inglaterra, entre 1998 e 2000, Pinochet recebeu milhões de dólares em doações de empresários destinadas a custear sua defesa legal. É compreensível, portanto, a revolta desses empresários que se sentiram lesados quando descobriram que estavam doando dinheiro para um multimilionário.

O cientista político do Instituto Chile, de Santiago, Juan José Rojas lembra que haveria boas razões para os partidos conservadores se vincularem a Pinochet, não fosse o escândalo financeiro. "O Chile vive hoje um momento de euforia econômica que não vivia há décadas. Embora um grande número de fatores tenha contribuído para isso, atribui-se ao regime de Pinochet a reversão da política estatizante de Salvador Allende e o mérito de ter assentado as bases do atual modelo econômico", disse Rojas.

"O ocaso humilhante de Pinochet traz benefícios para a democracia e a sociedade chilena", diz Holzman, professor de ciências política da Universidade Católica de Santiago. "Há pouco mais de cinco anos, quando o ex-ditador ainda estava em Londres, a polêmica causada pela prisão de Pinochet na Inglaterra polarizou o país", diz. Metade dos chilenos estava radicalmente a favor dele e a outra metade, radicalmente contra. Cada declaração dele, cada pronunciamento da Justiça britânica, cada reação das Forças Armadas chilena causava uma forte tensão política no Chile. Isso agora acabou.

A população chilena, cerca de 15 milhões, foi politizada à força durante os anos do regime militar. O país tem apenas 0,5% de analfabetos e quase todos os habitantes do Chile tinham uma opinião formada sobre a ditadura. Não são poucos os que viram nela a única opção contra o comunismo representado pela administração de Allende - um fantasma considerável em plena guerra fria. Também não foram poucos os que se opuseram às atrocidades do regime que deixou mais de 35 mil presos, torturados, mortos e desaparecidos, de acordo com um relatório divulgado no mês passado por um grupo coordenado pelo bispo Sérgio Valech.

A desmoralização de Pinochet esvaziou a polarização. As distâncias ideológicas entre direita e esquerda já não são tão grandes. "Não acredito que Pinochet seja preso um dia, mas vê-lo respondendo a tantas acusações já me deixa contente", diz o ambulante Héctor, que vende jornais na praça atrás do Palácio La Moneda. No mesmo local, poucos anos antes, parentes de vítimas da ditadura se manifestavam diariamente exigindo justiça.

A prisão de Pinochet em Londres foi o ponto de partida para o declínio de sua influência. Essa decadência se acentuou com a série de processos no Chile por mais de 200 casos de abusos de direitos humanos. Outro golpe veio em 2004, quando o comandante do Exército Juan Emilio Cheyre assumiu a responsabilidade da força nas violações de direitos humanos. Essa decisão acabou isolando o irredutível Pinochet do restante dos militares. A descoberta das contas secretas afastou dele os empresários e o transformou de vez num fardo para seus ex-seguidores.

"Embora haja pouca possibilidade de ser levado a julgamento, Pinochet é hoje um homem condenado a manobras pouco dignas, como as internações hospitalares às vésperas de cada decisão judicial sobre ele", diz Holzman. Sem saída, os advogados propõem o pagamento do imposto devido sobre o valor depositado no exterior - segundo eles, um pé-de-meia feito pelo ex-ditador para o caso de ser forçado a viver no exterior.