Título: Cultura libanesa floresce após Revolução do Cedro
Autor: John Kifner
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/06/2005, Internacional, p. A14

BEIRUTE - Durante as eleições municipais em Beirute, no ano passado, pôsteres com a imagem escurecida de um homem chamado Al Murashah começaram a aparecer nos muros da cidade. Os cartazes estavam ao lado das milhares de imagens de líderes sectários familiares que se tornaram onipresentes durante a temporada eleitoral do Líbano que termina hoje. Al Murashah, no entanto, era uma ficção. Um candidato inventado por um grupo de arte underground chamado Heartland. Nas primeiras eleições do Líbano sem a presença de tropas sírias em quase 30 anos, o Heartland está de volta. Não com Al Murashah, mas com um projeto que eles chamam "Propaganda". Em vez de um rosto genérico, eles pregaram folhas de papel em branco.

A obra pretende ser um contraponto à explosão de imagens visuais que se apresentaram aos libaneses nos últimos quatro anos de tumulto: o assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri, os protestos contra a ocupação síria e a eleição parlamentar.

Sandra Dagher, a dona de uma galeria de arte que mantém contato com o grupo Heartland, disse que as folhas de papel em branco representavam um protesto contra a profusão de mensagens políticas, um contra-ataque gráfico aos lustrosos pôsteres eleitorais, slogans de protesto, grafitti e camisetas que estão por toda parte.

O Líbano, que já foi um líder no mundo das artes árabes, vive um surto de produções artísticas nos últimos meses. Galerias especializadas na venda de arte abstrata de ponta a colecionadores ricos se voltaram para pintores com temas políticos explícitos.

Fotógrafos e escritores abraçaram os eventos conhecidos como a Revolução do Cedro, examinando seu significado e criticando seus rumos. Com a súbita partida de uma presença militar com a qual os libaneses mais jovens conviveram durante toda sua vida, formou-se um vácuo no Líbano. Tudo que diz respeito a cultura e identidade libanesas está na mesa.

Entre os primeiros a se manifestar depois do assassinato de Hariri em 14 de fevereiro estavam os músicos. Dezenas de canções foram compostas. Até o Hezbollah, o grupo militante xiita, usa compositores para divulgar suas mensagens.

Os artistas do Líbano estão ficando mestres em analisar memória e reconciliação, otimismo e cinismo, identidade pessoal e coletiva. Esse movimento nasce no momento em que o país se esforça para traçar um futuro mais democrático sem a presença dominadora da Síria.

Philippe Aractingi, um produtor e diretor com mais de 40 documentários no currículo, está finalizando o que disse ser o primeiro longa-metragem produzido e financiado no Líbano desde a guerra civil que devastou o país de 1975 a 1990. Intitulado provisoriamente "O Ônibus" (numa referência ao ataque a um ônibus que deflagrou a guerra civil no país), o novo filme é um musical, com o brilho reluzente de Bollywood, a meca do cinema indiano. Ele acompanha um grupo de jovens dançarinos que estão tentando introduzir uma versão tecno contemporânea da dança clássica libanesa,o dabke.

Embora esteja trabalhando no filme há anos, seus temas centrais - a tensão entre cultura global e a libanesa, entre influência ocidental e tradicionalismo libanês - estão aflorando.

É difícil aferir o grau com que o trabalho de artistas libaneses, muitos deles elites culturais egressas da minoria cristã do país, influencian o diálogo político mais amplo.

No cosmopolita bairro de Hamra, uma janela da Galeria de Arte Agial exibe um quadro inspirado em acontecimentos recentes. Sabhan Adam, um pintor baseado na Síria, encheu uma tela de faces escuras, gritando. As formas são em X e as cores, as da bandeira libanesa. As pinturas de Adam estão sendo vendidas por milhares de dólares.

Mesmo a distinção entre formas baratas, produzidas em massa e "arte refinada", feita para durar mais e atrair gostos mais elaborados, adquiriu uma dinâmica política no Líbano. Os libaneses, dizem os críticos, se tornaram muito bons em produzir cultura "instantânea" - design gráfico, moda, música pop - enquanto deixam uma cultura mais profunda e potencialmente mais unificadora definhar.

"Beirute se tornou a capital do kitsch," diz Samir Khalaf, um professor de sociologia da Universidade Americana de Beirute, que vê uma tendência ao escapismo pós-guerra civil no gosto do Líbano por "consumo de massa" e "entretenimento público".

Khalaf argumenta que as artes podem ajudar a "neutralizar as características constituintes e avassaladoras que vemos ao nosso redor, as igrejas e as mesquitas."

Há também uma subcorrente profunda de nostalgia no corrente florescimento artístico. Uma exposição de fotografias e textos no Instituo Goethe, intitulada "Espaços Compartilhados em Tempos de Crise" contrasta imagens de Beirute dos anos 50 e 60 com imagens da guerra civil e de suas conseqüências.

Os textos recordam Beirute como uma cidade vibrante intelectual e culturalmente aberta, e sugerem que seu futuro é voltar ao passado. Mas há riscos nisso.

"Beirute os assusta," declara um pôster, referindo-se aos líderes árabes da região. "Ela sempre foi a fonte do seu terror, pois em seus jornais, clubes e teatros, costumava revelar todas as práticas anti-humanas que ocorriam nesta ou naquela capital árabe. Sua liberdade é a constante preocupação deles, sua democracia, o medo deles."