Título: 'Chega de políticos que só dão quando recebem algo em troca'
Autor: Cley Scholz
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/06/2005, Nacional, p. A12

O consultor Antoninho Marmo Trevisan é um brasileiro que pode dizer com orgulho que já levou pelo menos um corrupto para a cadeia. Ele e um grupo de amigos formaram uma associação dedicada ao combate à corrupção e transparência na administração pública, a Amigos Associados de Ribeirão Bonito (Amarribo). O grupo de moradores e ex-moradores da cidade do interior paulista conseguiu mandar para a cadeia um tipo comum no lamaçal da política brasileira, um desses prefeitos que desviam dinheiro da merenda escolar, remédios e obras. Um dos primeiros nomes da área empresarial a dar apoio ao PT e à candidatura Lula, Trevisan costuma conversar e encaminhar sugestões e estudos para o presidente, de quem se tornou amigo e admirador.

Quando trabalhou por um ano e quatro meses no governo Sarney, como secretário de Controle das Estatais, Trevisan elaborou uma norma que impedia nomeações políticas em estatais. Cargos de direção só poderiam ser ocupados por funcionários de carreira. A idéia foi engavetada após seu afastamento, mas até hoje ele defende a proposta como uma das formas de combater a praga da corrupção. "O indicado político não se vê obrigado a atender a missão da corporação, mas sim o interesse de quem o indicou."

Aos 57 anos, dirigindo um instituto e faculdade que leva o seu nome e tem mais de 600 alunos, o consultor propõe a Lula uma campanha para moralizar a política. "As pessoas se cansaram da convivência com esse tipo de político que só dá quando recebe algo em troca." Trevisan só reclama da política econômica, que acha muito pobre e concentradora de renda.

A seguir, a íntegra da entrevista concedida na tarde de quinta-feira, quando José Dirceu anunciou que deixava o governo e horas antes de o consultor internar-se numa clínica para distúrbios do sono, problema que - ele garante - não tem nada a ver com a situação política.

O senhor está desencantado com o governo Lula?

Não. O que está acontecendo no Brasil eu já vi em Ribeirão Bonito. O Brasil convive e suporta a corrupção há muito tempo. O que está sendo colocado para a sociedade é como as coisas acontecem. O País não está mais disposto a aceitar esse tipo de relação promíscua com o Congresso Nacional. A crise abre espaço para uma ampla reforma política.

Já conhecia o mensalão?

Não, eu jamais podia sequer imaginar e jamais ouvi falar.

O que o senhor acha que o presidente Lula deve fazer?

Acho que ele deve estimular um amplo movimento de combate à corrupção, chamando todas as ONGs que estão ligadas a esse tema. Conclamar a sociedade, liderar um processo amplo por todos os municípios e promover uma nova cultura no Brasil de não convivência com a corrupção. Incentivar a indignação. A minha experiência, lá em Ribeirão Bonito, foi a de que ninguém combate a corrupção sozinho. Um governo é incapaz, incompetente e não tem forças para combater a corrupção sozinho. Se não houver um compartilhamento e apoio de toda comunidade, esquece. Vamos ficar ouvindo discursos, assistindo a CPIs, teatros, mas não haverá combate.

O governo ainda tem credibilidade para tanto?

O presidente é uma liderança incontestável, especialmente junto às populações mais pobres. Sozinho, ele não vai conseguir, e nem se pode esperar que um governo consiga isso. A corrupção é mais forte que os governos.

O afastamento dos ministros e dirigentes de partidos citados durante as investigações é importante?

Acusações, em denúncias desse tipo, são palavras ao vento. Eu prefiro crer que essas pessoas que se defenderam estejam dizendo a verdade. Mas o ideal, no meu entender, é que as pessoas citadas se afastem.

Como vê o caso do ex-ministro José Dirceu?

Não acredito que tenha qualquer envolvimento. É da natureza da relação de trabalho de um ministro que tem entre as suas atribuições manter relações parlamentares, compartilhar discussões sobe funções, cargos e acordos. É o trabalho dele, não tem outra forma de ser. Eu não colocaria o ministro Dirceu no banco dos réus, pela história que ele tem.

O que diz a cartilha de caça a corruptos da Amarribo sobre acusações e denúncias?

A minha principal contribuição para a cartilha é justamente nesse capítulo: não fazer denúncias vazias. É preciso provas. Especialmente no âmbito político. O parlamentar, com sua imunidade, tem o direito de dizer o que quer. Acusa, fustiga, xinga. Mas nada acontece sem provas.

É possível não haver corrupção com esse sistema de troca de apoio por cargos?

Quando fui secretário de Controle das Estatais, no governo Sarney, com o ministro João Sayad, elaborei uma proposta de norma na qual cargos de direção só poderiam ser ocupados por funcionários de carreira. Qualquer ingerência política deveria ser feita no âmbito do conselho de administração.

Não funcionou?

Nem foi implementada. O projeto foi para a gaveta. É claro que a indicação política de cargos leva a fatalmente a um mundo perigoso. Se há um pecado neste governo e nos anteriores é o de insistir no loteamento das estatais como moeda de troca. Estão aí as estatais privatizadas para mostrar isso. Veja como se transformou a Vale do Rio Doce. A Embraer. Mudou a atitude dos diretores e dos principais quadros. No momento em que a empresa deixa de ser estatal, todos passam a trabalhar para maximizar o valor da corporação. Com indicações políticas, a empresa vira um instrumento de política econômica, com suas tarifas, um instrumento de política social ou de política partidária. Nos três casos os efeitos são danosos.

Mas o governo Lula é contra a privatização.

Tenho a minha proposta. Não admitir executivo de estatal que não passe por uma banca de recrutadores profissionais. Mesmo os concursados.

Mas quem vai indicar os recrutadores?

Eles recrutam segundo um perfil estabelecido pelo governo ou pela empresa. Existem maneiras de governança para se ter segurança de que as escolhas obedecem critérios técnicos. Essa é a única saída não só para as estatais como para as posições de administração direta. Fazer parte de um partido político ou grupo não significa que a pessoa está em condições de dirigir coisa alguma. É preciso um processo de avaliação.

O senhor integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. O chamado conselhão funciona?

O conselhão poderia ser melhor usado. Ribeirão Bonito criou o seu conselhão. E funciona. O conselhão do governo federal poderia funcionar mais, e melhor, mas ele funciona. Já discutiu importantes questões como a reformas da Previdência e a Tributária e hoje discute o Conselho Monetário Nacional. Ele é amplo. Poderia manter comitês temáticos. No caso da crise atual, o presidente da República poderia contar, por exemplo, com um grupo de conselheiros ligados à questão da corrupção - personalidades, integrantes da magistratura e ONGs que são preparadas para apoiar o presidente nesse debate, seja aconselhando, seja funcionando como uma governança.

A reforma administrativa ajudaria agora?

O Lula é impressionante: ele cresce na crise. Tenho recebido empresários que não votaram no PT e querem saber como podem fazer para ajudar o presidente. Fui procurado esta semana por representantes da Sociedade Rural Brasileira com essa preocupação.

O senhor vota em Lula nas próximas eleições?

Não tenho dúvida. O Brasil passou a ser mais respeitado no mundo graças ao Lula. Ele é uma liderança especial no continente. Faz diferença.

O Brasil melhora em termos éticos com essa crise?

Vai melhorar por causa dela. Tem condições de dar um salto. Temos hoje 82 ONGs criadas a partir do movimento de combate à corrupção de Ribeirão Bonito. A Amarribo presta consultoria para 920 cidades em movimentos como o que fizemos na nossa cidade. Há uma expectativa e uma grande vontade, um ambiente que nunca foi tão favorável. As pessoas se cansaram da convivência com esse tipo de político que só dá se recebe algo em troca. Lula pode liderar um grande movimento dessa natureza. Ele personifica a honestidade nos seus ideais, no seu comportamento e coerência. Quanto mais conheço e convivo com o Lula, mais o admiro como pessoa e como presidente.

Como vê os juros altos?

Acho um equívoco essa insistência no juro alto. Estamos pagando um preço muito alto. O juro vira custo fixo nas empresas e funciona como um bumerangue. É fator inflacionário. Existem muitas formas de se combater a inflação. O juro alto aumenta a concentração de renda. Custa caro ao País. Enfraquecemos o mercado consumidor e as empresas médias e pequenas, que formam a base da economia. Só privilegia os grandes conglomerados e os bancos. É preciso ajustar a máquina e fazer a uma reforma fiscal, e não apenas uma reforma tributária. E reduzir a burocracia.