Título: Quando a encenação soberba queima o filme
Autor: Alcione Araújo
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/06/2005, Aliás, p. J3

Roberto Jefferson, o homem que com palavras e sem provas abalara as estruturas políticas da Nação, irrompeu na sala do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados com tal altivez que impôs à platéia um silêncio pasmo. Acusado de enxovalhar a honra de parlamentares, querem cassar-lhe o mandato - é um réu. O desavisado é tomado pelo orgulho cívico diante do Conselho, supostamente habituado com os labirintos da sutil ciência da ética e preparado para julgar com isenção os desvios dos próprios pares. Em cada um, a gravidade da conduta ilibada, sem dúvidas morais e carreiras sem máculas. A pátria será salva. "Senhor presidente" - o réu improvisa sua defesa com voz firme - "senhores deputados, cidadãos do Brasil que me ouvem..." A tensão não abala a confiança: gestos serenos, encara a platéia com olhar duro. "Inicio meu depoimento agradecendo ao deputado Valdemar Costa Neto, presidente do PL, pela oportunidade que me deu de falar ao Brasil." Se surpreende a firmeza do réu, espanta a ironia com que se dirige ao deputado que quer cassá-lo: "O ódio que V. Exa. tem vituperado nas TVs, vou devolver com serenidade; a hipocrisia que tenho ouvido de V.Exa. nas TVs, vou devolver com sinceridade".

Difícil entender: o réu agradece ao desafeto? De que remotas vivências viriam as reservas de dignidade que, nas circunstâncias, explicariam o ar superior? Gotas de suor crescem na fronte do acusador, que masca chicletes - único movimento na sala muda. O réu mostra que sabe usar as palavras e, sobretudo, as pausas - deixa a platéia em suspense pelo tempo exato; a cada idéia que quer valorizar, imobiliza gesto e olhar, e mantém o silêncio: "Não corro, não temo; haverei de enfrentar cada passo, cada momento desse processo, que vai longe. Começa aqui e deságua na CPI dos Correios e do Mensalão". O réu ameaça, o Conselho se cala. O homem que parou o país assusta os de moral ilibada? Ousado, desafia: "Não renuncio ao meu mandato, vou com ele até o fim, apesar de não ser o mais importante a defender aqui. Há coisas acima do mandato, que não abro mão". Se a perda do mandato não o intimida, a pena máxima não o ameaça. Se ele se põe acima do mandato, o Conselho, que julga desvios éticos, não o alcança. O tribunal ficou aquém do réu.

Cresce o interesse pelo instigante réu. Numa guinada espetacular, ele salta da condição de réu, citado no flagrante de corrupção filmado nos Correios, para a de acusador, em legítima defesa, da corrupção do mensalão. Ataca com pureza ética e bravura de paladino. Seu passado cheira mal, seu partido transita nas sombras e ele foi guarda-costas de Collor, que deve tê-lo atraído aos rasgos teatrais - mas, que diabo, os homens mudam, há os que se redimem; colloridos ocupam respeitáveis postos da República, e seu fogo tem alvo certo. O país acompanha suas palavras, gestos, olhares, pausas e respiração. Compartilha sua angústia, sofre seu drama, sente suas emoções, identifica-se com ele. Assim como o Conselho, que, mesmo na nova condição de suspeito, está fascinado com a coragem do acusador, que assume o papel de mártir e faz sua auto-incriminação. E, súbito, me dou conta de que - vício do ofício - eu próprio me envolvera na audiência como me rendo a um espetáculo teatral. Talvez a expectativa, grávida de esperança com os rumos do País, reunira emoções dispersas que eclodiram numa catarse. Restauro a realidade como quem junta os cacos do espelho que Shakespeare queria como palco.

A passagem de réu a acusador, de acusador a vítima, de vítima a mártir - estrutura típica da dramaturgia de manipulação - desvelou o espetáculo sob aquela audiência. Antes de deputado e líder do PTB, Roberto Jefferson é ator, com ambição a cantor lírico. Rosto expressivo, diabolicamente versátil, passa sem transição do choroso ao irado, do atormentado ao contemplativo, do irônico ao indulgente, do arrependido ao eufórico. Gestos definidos apóiam as intenções, olhar frontal que inibe, palavras contundentes, voz poderosa, pausas precisas. Não poupa nem o velho aparte teatral. Rompe a cena, dá recados insolentes: "Zé, se você não sair daí rápido, vai fazer réu um homem decente como o presidente Lula".

Nas cenas a dois tem desempenho soberbo. Com V.C. Neto, que, suado, aflito, gesticulando como polvo, lê aos berros seu papel, Jefferson encara-o imóvel, até ele exigir: "Quem são os deputados do PL que recebem o mensalão?" Jefferson: "V. Exa. recebe". V.C. explode: "Eu sabia que V. Exa. viria desmoralizar esta casa". Jefferson: "Esta casa, não: o senhor". Exasperado, o deputado Sandro Mabel fica de pé, bradando pífios argumentos. Queixo na mão, Jefferson acompanha quieto, tal como Marlon Brando no Poderoso Chefão, ciente de que o poder é sereno, não ergue o corpo nem a voz, como reis, papas, caciques e juízes. Políticos denunciam o uso dos recursos teatrais - diante da platéia, que é real, o artista se empenha para tornar verdadeira a personagem que não existe; já o político quer tornar personagem a pessoa que é real. Jefferson é um ator em busca de personagem - passa de uma situação a outra, segundo as conveniências, e convence em muitas delas. Porém, exibida inconclusa, sua obra deixa os andaimes à mostra e, ao reconstituir seu trajeto, o que liga aquelas caras é o mais glacial cinismo.

Finda a audiência, não se disseram tantas novidades - o teatro não tem sofreguidão pelo novo -, mas se disse o que nunca foi ouvido - o teatro serve à denúncia. Bom ator, Jefferson deve ser cínico - superior a seus pares porque é inteligente e informado, corajoso e convincente. Talvez não tenha dito a verdade, mas é verossímil o que disse - para o teatro basta. Sua performance polêmica - elogio para o teatro - perturbou os membros do Conselho de Ética da Câmara - reserva moral da Nação,não sabia se o desqualificava ou o admirava, se o glorificava ou destruía. Instalou-se o medo. Quem entrou como réu saiu paladino da moral. Numa Câmara que extrai cardeal do baixo clero, Roberto Jefferson pode fazer papel de papa.