Título: Momento de ousar
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/06/2005, Notas e Informações, p. B3

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva poderá proteger a economia brasileira desta e de outras crises políticas se tiver a ousadia de promover duas grandes mudanças: uma ambiciosa reforma do orçamento e uma blindagem de grande parte da administração contra o loteamento de cargos. Com a primeira iniciativa ele conduziria o País a um status mais elevado no sistema econômico e financeiro internacional e consolidaria os fundamentos necessários a um crescimento duradouro. Com a segunda, tornaria mais profissional a gestão do Estado e de suas empresas e tornaria a máquina pública menos vulnerável aos conchavos políticos e à corrupção. Com ambas, tornaria mais arejada e mais democrática a condução dos negócios públicos. A crise tornou mais evidente a importância das duas medidas, mas, ao mesmo tempo, criou a ocasião para ambas. Diante da maior turbulência política enfrentada em seu governo, o presidente parece ter percebido que é preciso radicalizar o compromisso com a reforma fiscal . A melhor maneira de fazê-lo é fixar uma nova meta para o governo: reduzir a zero, no prazo de alguns anos, o déficit orçamentário do setor público. Para isso, será necessário conter as despesas de custeio e tornar o orçamento mais flexível, diminuindo ou eliminando, se for possível, as vinculações de verbas. Já se discute, em Brasília, uma proposta de emenda constitucional (PEC) para a promoção dessas mudanças. A PEC duplicaria a desvinculação de receitas orçamentárias, elevando-a progressivamente para 40% da receita geral e congelaria em termos reais tanto o custeio quanto os valores destinados a despesas hoje obrigatórias. Com o congelamento, o valor desses gastos seria mantido, mas sua participação no orçamento seria decrescente, já que a receita orçamentária tenderia a acompanhar a expansão da economia. O governo ficaria, portanto, mais livre para escolher a destinação das receitas orçamentárias, de acordo com as prioridades eleitas para cada etapa. A fixação de um prazo para se alcançar o equilíbrio das contas públicas daria ao programa a necessária credibilidade, limitaria o arbítrio do próximo governo e ao mesmo tempo o tornaria menos vulnerável a pressões por aumento de gastos. Adotar um projeto desse tipo exige uma dose especial de audácia. Uma emenda constitucional envolve um compromisso muito forte e equivale, de certa forma, a queimar os navios para dificultar o retorno. Mas esse seria o principal ingrediente da credibilidade. Esses compromissos não bastam, no entanto, para garantir o bom uso do dinheiro público. Podem tornar o orçamento mais administrável e, ao mesmo tempo, contribuir para uma rápida redução dos juros. Com essa redução, também as despesas financeiras tenderão a tornar-se mais suportáveis, deixando ao Tesouro mais dinheiro para aplicação em gastos econômica e socialmente rentáveis. No entanto, será conveniente reformar esse esquema com novos critérios para elaboração do orçamento. Haverá ganhos importantes para o País se as emendas pessoais forem eliminadas e se os projetos inseridos no orçamento forem vinculados a prioridades nacionais. A redução dos cargos de livre provimento contribuirá para a melhor operação do governo e das empresas estatais. Internamente, será uma demonstração de respeito aos profissionais que ingressam nas carreiras por meio de concurso ou de seleção baseada em critérios técnicos. É freqüente, hoje, ouvir desses profissionais queixas contra a desvalorização da carreira, que ocorre sempre que posições técnicas são atribuídas a apadrinhados de políticos. Ao mesmo tempo, oportunidades para favores, empreguismo, aparelhamento partidário e corrupção com certeza serão reduzidas. Além do ganho político e moral, serão criadas condições mais favoráveis ao crescimento econômico e à prestação adequada de serviços ao público, se a maior parte da máquina administrativa for operada segundo critérios técnicos. Nenhuma dessas mudanças será fácil. Mas políticos e grupos que se opuserem a medidas dessa natureza terão dificuldades, certamente, para justificar-se perante a opinião pública.