Título: Lama da corrupção
Autor: Xico Graziano
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

Pensativo, o agricultor José Batistela acompanha o noticiário político. Como todos os brasileiros, encontra-se perplexo. Homem honrado, tem dificuldade de entender toda essa confusão. Mas está atento. Muito atento. Descendente de italianos, daqueles que para São Paulo vieram trabalhar na lavoura do café nos idos de 1870, seu José representa o típico homem do campo. Sitiante, dono de uma pequena propriedade rural, acorda com o nascer do sol e dorme cedo. Como os pássaros. Grossas e calejadas, suas mãos espelham meio século de labuta na terra, cultivando e criando, zelando por seu pedaço de chão. Essas famílias pioneiras que abriram o interior, enfrentando a malária no muque, firmaram laços que se enraízam. Apegam-se à sua história. Constituem homens e mulheres laboriosos. O trabalho na roça é árduo, diferente das fábricas e das lojas, onde o ambiente é controlado. Quem produz comida tem o sol como companhia ou molha a roupa com a chuva abençoada. Os trabalhadores "com terra" do Brasil, esses milhões de agricultores tradicionais que construíram a riqueza básica do País, acostumaram-se a viver meio isolados, distantes. Sua jornada, quando não única, envolve poucos. Inexiste linha de produção na agropecuária. As características do trabalho, a distância da moradia, a proximidade com a natureza, tudo isso gera uma cultura própria, o modo de ser rural. O verdadeiro agricultor, bem como seu trabalhador, gosta de calmaria. É matuto, mas sábio. O mundo, porém, mudou. Durante as últimas quatro décadas, o campo foi massacrado pela cidade. Tudo de bom parecia reluzir apenas na urbe, firmando os valores da modernidade capitalista. Nesse processo, o agricultor acabou transformado em caipira, sinônimo do atraso. Quase ignorante. O furacão do progresso criou as metrópoles. Aí chegaram a marginalidade, a insegurança, o trânsito caótico, o barulho, a poluição. Verdadeiras colméias de prédios, paradoxalmente, separam, e não aproximam as pessoas. Acabaram-se as rodas de conversa na calçada, o namorico nas praças. Nos tempos de agora, pós-modernos, passada a tempestade do êxodo rural, começa-se a verificar uma revalorização do campo. Não se encontra mais, claro, aquela sociedade agrária dominada pela oligarquia, o antigo Brasil. Ressurge um novo mundo rural, puxado pelos agronegócios. O caboclo, porém, manteve sua índole. Sua cultura incorporou, obviamente, elementos da atualidade, sem mudar o fundamental: a simplicidade. O que faz a grande diferença é a mídia. Antes, o rádio o acompanhava na solidão da fazenda. Agora, com ajuda da antena parabólica, ele se tornou telespectador. Na televisão conheceu, com seus próprios olhos, as mazelas da sociedade em que vive. Corrupção na política, para seu José, era coisa sabida, mas distante. Nestes dias, mais que em qualquer outro período, ele descobriu a podridão de Brasília. Assistiu ao teatro do mal, à farsa do Congresso. Chocado não se quedou, porque a rigidez de seu caráter não lhe permite emoções baratas. Ficou, isso sim, é indignado. Lá no campo, lamaçal forma-se após as grandes chuvas. A tela mágica, todavia, forneceu detalhes da lama da corrupção. O homem refletiu. Aqui, sua estrada continua esburacada, sem dinheiro para consertá-la. Lá, a grana sobra na mesada dos votos governistas. Na agência bancária, tratam-no com desdém quando solicita crédito rural. Nunca tem dinheiro para a agricultura. Entre os graúdos, malas se desviam para comprar voto e consciências. É raro o agricultor ser politizado. Conservador por natureza, nunca deu muita bola para a política, menos ainda para esse negócio de esquerda e direita. Gosta de eleição, acha cívico, mas despreza a politicagem. Nunca torce pelo pior. O PT ganhou, ele aplaudiu. Mas seu José está chateado com o governo. De uns tempos para cá, vinha sendo perseguido por fiscais, que de forma grosseira o incriminavam. Primeiro, xingaram-no, dizendo que estava acabando com a ecologia. Depois, tacharam-no de malandro porque seu filho ajudava no trato dos animais. Por fim, disseram que era escravocrata. Coisa do mal. O agricultor sentiu-se estigmatizado, tratado com preconceito. Deve ter gente por aí, pensou, que faz as coisas erradas. Não somente na roça, na cidade também. Tanta lei nova talvez exigisse a pedagogia do bem, para explicar melhor os novos valores sociais. A turma do campo gosta de aprender. A grande maioria dos pequenos agricultores nacionais, como seu José, abomina a arruaça dos sem-terra. Ordeiro, prefere conversa à confusão. Olha os invasores e enxerga foices e enxadas com cabo branco, limpinhos. Nunca serviram ao trabalho. São armas contra a democracia. Em meio à sujeira toda, seu José descobre que também os justiceiros agrários recebem gordas mesadas, disfarçadas nos convênios que firmam com o Incra. Quem lhe mostrou, ao vivo, foi a tal da CPMI da Terra, ao quebrar o sigilo bancário do MST. Piorou sua bronca. Há quem desdenhe do agricultor tradicional. Agridem-no em nome da ecologia ou da justiça social. Alguns até o acusam de caloteiro. Mas pela televisão, facilmente se descobre quem são os verdadeiros malfeitores. Disfarçados de santos, roubam o povo. Venderam ilusão, pagaram com mensalão. Assim está pensando, neste momento, José Batistela. Falta aos políticos velhacos um pedaço do caráter do agricultor. Modéstia e honradez não prejudicam a ninguém. E que Deus nos ajude.