Título: Começar de novo
Autor: CELSO MING
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/06/2005, Economia, p. B2

Não deixa de ser um avanço reconhecer, como segunda-feira o presidente Lula reconheceu em Assunção, que o Mercosul está malparado e tem problemas. É um avanço pois até agora as reuniões de cúpula de chefes de Estado se limitaram a discursos grandiloqüentes e à emissão de extensos comunicados oficiais que enaltecessem supostas qualidades do bloco sem se ocupar do principal, que é assentar um tijolo sobre o que já estiver solidamente assentado. As coisas não vão mal só agora. Se há anos os presidentes do aglomerado que pretende o status de união aduaneira falam em relançamento e refundação foi porque sentiram a necessidade de relançá-lo e refundá-lo em novas bases, porque as atuais não são confiáveis. Mas não basta reconhecer. É preciso ter projeto para sair da pasmaceira e tapar os buracos do queijo gruyère, como bem o definiu o presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez. Em vez de partir de baixo e consolidar os alicerces do Mercosul, o governo Lula insiste na criação de superestruturas inócuas, como o Parlamento do Mercosul, que já tem nome e sigla (Parlasul), mas cuja função não está clara. Não adianta fingir que os argentinos sabem o que dizem quando afirmam que tudo dá errado porque há assimetrias. Elas existem em profusão e não serão resolvidas tão cedo. Não há assimetrias só entre os quatro. As assimetrias estão dentro de cada país. Entre o Nordeste e o Centro-Sul brasileiros há assimetrias maiores do que entre Brasil e Argentina. O Mercosul só tem futuro se seguir adiante, a despeito das assimetrias. Não será a adoção de políticas macroeconômicas convergentes que eliminará as diferenças. Tais políticas não foram possíveis até agora pois cada país tomou um rumo sem olhar para os demais. Só para ficar com a situação dos dois maiores sócios, ao longo da década de 90 a Argentina adotou o Plano de Conversibilidade em que prevaleceu o câmbio fixo e o endividamento com gastos públicos impressionantes que desembocaram na quebra, no curralito, na suspensão de pagamentos e no calote da dívida. Enquanto isso, após desvarios fiscais, o Brasil viveu primeiro a moratória da dívida externa e a hiperinflação e, depois, o Plano Real, a política de valorização da moeda que se seguiu à livre flutuação e à formação de superávits primários crescentes, que ainda não garantiu o crescimento sustentado. Os buracos do Mercosul estão mais embaixo, no primeiro estágio da integração, o da área de livre comércio. Não há respeito sequer pelo livre fluxo de mercadorias no bloco. A Argentina defende adoção de salvaguardas contra entrada de produtos brasileiros destituídos de qualquer sofisticação tecnológica, como no caso de calçados, linha branca e têxteis. Quer prorrogar por mais três anos o acordo automotivo que vence ao final deste ano, sem colocar em marcha uma política que possa aumentar a competitividade de seus veículos ante os do Brasil. É mais provável que, ao longo de outros três anos, montadoras brasileiras fiquem mais competitivas do que já são diante dos argentinos pois terão eliminado a atual capacidade ociosa de mais de 50%. Os argentinos nem sequer percebem que adiar a liberação do fluxo de veículos e autopeças dentro do Mercosul pode não lhes convir. Começar de novo no Mercosul é tratar primeiramente de consolidar a área de livre comércio para só mais adiante definir uma política externa comum (união aduaneira). Nem a União Européia consegue dar velocidade à integração que começou nos anos 50, como se conferiu pela rejeição da Constituição Européia por França e Holanda. Por que queimar etapas se nem o essencial está funcionando?