Título: O desafio de reduzir o abismo social
Autor: Peter Mandelson
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/06/2005, Internacional, p. A17

A cúpula de Bruxelas, na semana passada, sublinhou a difícil escolha diante da Europa: continuar seguindo em frente como antes ou, à luz do voto negativo dos franceses e holandeses, repensar fundamentalmente as prioridades e políticas do bloco. Os antieuropeus, é claro, querem usar a crise para rebaixar a Europa e transformá-la em alguma área de livre comércio fraca e ineficaz. Acredito profundamente que a Europa, tendo resolvido os problemas das guerras civis européias do século 20, é a resposta para muitos desafios do século 21 - e, a menos que sejamos capazes de tornar a idéia da Europa mais atraente, a política progressista sofrerá grande enfraquecimento. O político trabalhista Nye Bevan ficou famoso por dizer que o unilateralismo significaria enviá-lo, como chanceler, "nu para a sala de reunião". Sem a Europa, entraríamos nus no mundo da globalização. A Europa é um projeto tanto político quanto econômico. A questão para os modernizadores da Europa é fazer a política certa.

Na cúpula de Bruxelas, o chão balançou sob o "cheque britânico" (reembolso pela contribuição ao orçamento da UE) e a política agrícola européia. Tony Blair acenou com uma mudança radical ao declarar que o reembolso, outrora "inegociável", agora está sujeito a modificação. E um forte núcleo de países exigiu que os gastos agrícolas sejam submetidos a uma revisão antecipada e de longo alcance. Como defender, perguntaram eles, a idéia de que ainda em 2013 a UE deverá estar gastando 40% de seu orçamento com 5% de sua população - sete vezes mais que as fatias propostas para ciência, pesquisa, educação e infra-estrutura, que representam o futuro da Europa na economia do conhecimento?

Isso ilustra mais que uma briga inconveniente por dinheiro. Diz respeito ao âmago do propósito e da direção da UE, porque a reformulação do orçamento tem de ser parte de um debate muito mais amplo sobre a serventia e o rumo da Europa.

O projeto europeu está sob ataque de um populismo da direita que culpa os estrangeiros por todos os males e um populismo da esquerda que se alimenta do medo da globalização, do "liberalismo" anglo-saxão e da perda de empregos. Enquanto a UE for clara sobre suas políticas e sua direção, será possível galvanizar a maioria na Europa contra tais extremos.

A Europa está diante de uma escolha fundamental. Uma opção é mergulharmos no declínio econômico, perdendo os meios para financiar nosso estilo de vida preferido. A outra é dar continuidade a reformas econômicas dolorosas que podem nos tornar novamente competitivos nos mercados mundiais. Esta reforma tem um propósito: não americanizar a Europa, e sim tornar nosso modelo europeu de sociedade sustentável pelas próximas gerações. Essencialmente, precisamos de um novo consenso para uma reforma econômica baseada na justiça social. Precisamos defender a idéia de que podemos unir globalização e justiça social; de que podemos abrir os mercados na Europa e promover reformas econômicas de modo a estreitar, e não ampliar, o abismo entre "vencedores" e "perdedores".

Sempre acreditei numa dimensão social para a Europa. Minha preocupação é que a Europa "social" que construirmos deve ser voltada para o futuro, e não presa ao passado, defensiva e protecionista. Sua proposta motriz deve ser a de oferecer segurança fomentando a oportunidade, e não tentar inutilmente bloquear a mudança. O velho modelo social europeu foi construído com base na proteção do emprego. Mas hoje muitos desses arranjos ofendem a justiça social, pois acentuam uma divisão entre os que estão dentro e os que estão fora, fechando o mercado de trabalho para os desempregados.

O desafio de hoje é equipar cada cidadão, de qualquer contexto social, nacionalidade, cor ou religião, para realizar seu potencial individual numa economia global em rápida mutação. Este compromisso com o indivíduo define nosso caráter europeu, mas as instituições formadas no século passado para sustentá-lo precisam de modernização e reforma.

Precisamos de novas abordagens e instituições para enfrentar os novos desafios sociais de estender a oportunidade ao longo do ciclo da vida - combatendo a desvantagem herdada, por meio do investimento no apoio social e na educação das crianças pequenas e suas mães.

Isto significa oferecer altos padrões de ensino em comunidades etnicamente diversas e socialmente fraturadas; promover a capacitação e o aprendizado vitalício dos que não aproveitaram a escola; buscar padrões de excelência mundiais na educação superior e na pesquisa; abrir o acesso à reciclagem e à ajuda para as vítimas da mudança econômica; ajudar os trabalhadores mais velhos a se reintegrar ao mercado e adaptar o conceito tradicional de aposentadoria; integrar os migrantes e grupos minoritários a nossas comunidades locais com mais sucesso do que conseguimos até agora. Estes são exemplos dos desafios comuns que um modelo social moderno deveria enfrentar. Eles são vitais para o público recuperar a confiança e voltar a ver a economia européia de mercados abertos e comércio livre como o único caminho para o sucesso global.

Alguns perguntarão: essas questões não são essencialmente nacionais, a ser resolvidas por cada Estado membro? Sim, são principalmente isso. Mas há uma dimensão européia indispensável nas políticas de reforma nacionais. O estabelecimento de maior consenso sobre como tornar a mudança econômica aceitável é a chave para a reforma econômica mais rápida, membro a membro, com a qual todos se beneficiarão. E dar atenção às necessidades dos "perdedores" será essencial se a Europa quiser recuperar a aprovação política para a ampliação.

Para desenvolver um novo modelo social e econômico, precisamos de um debate aberto. Isto não funcionará se os defensores da velha Europa "social" simplesmente continuarem como antes, a despeito da globalização. Não funcionará se os defensores da reforma econômica parecerem acreditar que a aceitação da globalização é tudo o que importa, a despeito da ação social necessária para fazê-la funcionar para todos. Os reformistas precisam adotar nova linguagem e novo conjunto de prioridades.

Um novo consenso pode ser encontrado na Europa. É hora de o governo britânico, que assume em julho a presidência da UE, sair à frente, usando o fracasso da cúpula para um efeito catártico. Como resultado, deveremos ganhar um orçamento com prioridades que beneficiem a todos e uma visão que inspire fé no projeto, em vez de enfraquecê-lo ainda mais.