Título: Déficit zero - o que é isso, companheiros?
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

A idéia do déficit nominal nulo nas contas governamentais, levada a Lula pelo deputado Delfim Netto (PP-SP), recebeu importante impulso por conta dessa apresentação e do peso intelectual de quem a fez. A proposta é discutida há tempos, mas só entre economistas, e nos círculos decisórios ainda está longe de suficientemente percebida, amadurecida e apoiada para assegurar empolgação com ela e sua realização. Mas do que se trata? Imagine-se o leitor com uma dívida pessoal muito alta, diagnosticada ao perceber que a receita própria, menos outros gastos que não os juros da dívida, gera um saldo suficiente apenas para pagar parte desses juros. Assim, há um déficit final, com o que a dívida cresce continuamente, agravada por taxas de juros muito altas, que em grande parte vêm da desconfiança dos credores quanto à capacidade de o devedor honrar sua dívida.

Além disso, os gastos destinados à manutenção da casa própria estão abaixo do necessário, o que leva à deterioração do imóvel e de seu valor. Percebe-se, também, que a aquisição de novos instrumentos de trabalho, capazes de elevar os rendimentos pessoais, está inviabilizada por esse quadro de dificuldades. Enfim, uma situação nada confortável, tanto no presente como nas suas perspectivas futuras. Transpondo essa situação para o setor público, nele a receita própria, menos outros gastos que não os juros da dívida, gera um saldo chamado de resultado primário, insuficiente para pagar a totalidade desses juros. Portanto, há um déficit final, o resultado nominal, com o que a dívida sempre cresce, agravada por taxas de juros muito altas, advindas em larga medida da desconfiança dos credores.

Entre outros gastos do governo que não os juros, os destinados à manutenção das estradas estão abaixo do necessário, o que leva à deterioração delas e prejudica a atividade econômica. Ademais, a construção de novas estradas, que ampliaria essas atividades e a receita governamental, está inviabilizada na escala necessária para um impacto relevante.

O que torna a situação do governo ainda mais grave é que ele é o maior devedor dentro da economia, com o que a alta taxa de juros que paga contamina os demais devedores, que dessa forma vêem prejudicados seus anseios de consumo e projetos de investimento, estancando assim o crescimento econômico. Este também é prejudicado pela alta carga tributária cobrada por um governo sempre carente de recursos para pagar os juros da sua dívida e demais gastos.

Para o governo, a saída dessa enrascada é, nas suas linhas gerais, a mesma que uma pessoa deveria buscar para a situação inicialmente descrita, exceto que no governo as ações e decisões são muito mais difíceis. Um déficit nominal zero significaria que a dívida deixaria de crescer em valores absolutos, pois só se precisaria rolar a dívida, sem aumentá-la. Isso traria mais confiança para o devedor, credenciando-o a pagar juros mais baixos, com efeitos favoráveis, os do governo por toda a economia, ao estimularem a produção e a própria receita governamental, além de reduzirem o montante do déficit nominal a ser zerado.

Para essa zeragem um aumento da carga tributária é inconcebível, pois ela já ultrapassou os limites do razoável e vem prejudicando o crescimento da economia. Será preciso, portanto, cortar despesas, o que é fácil de prescrever, mas dificílimo de fazer.

Como, então, prosseguir? No governo há claramente alguma margem para cortes em despesas como viagens, cargos de confiança e gastos de publicidade, como o noticiário está a demonstrar. Seriam cortes importantíssimos pelo seu efeito emblemático, mas seu montante seria pequeno em face das necessidades impostas pela zeragem do déficit.

Nas despesas de maior vulto além dos juros, como gastos com pessoal e programas sociais, há a inflexibilidade dos salários e dos itens vinculados constitucionalmente a porcentagens da receita tributária, como educação e saúde. O fim dessa vinculação é indispensável, mas ele não deve ser confundido com cortes de gastos como esses. Por algum tempo, tais gastos seriam mantidos constantes em valores absolutos, com o crescimento da receita gerando recursos adicionais para zeragem do déficit nominal. E, depois que os impactos positivos dessa zeragem se disseminarem pela economia e alcançarem as receitas governamentais, tais gastos poderão ser até maiores, beneficiando-se também da queda dos juros e, conseqüentemente, do déficit nominal a zerar.

No processo de rearranjo das despesas, alguma margem seria reservada para investimentos em infra-estrutura, como em estradas, pois o governo também precisa recuperar seu papel nessa área crucial para o crescimento da economia. Colocada nesses termos, com cortes de despesas e desvinculações de receitas, a idéia do déficit nominal zero vai bem além da política hoje seguida, de buscar superávits primários crescentes para arcar passivamente com a conta de juros agravada pelas decisões do Banco Central. Longe de uma saída, essa política só prolonga o impasse.

Aparentemente, Lula gostou da idéia trazida por Delfim Netto, pois o levou a dialogar com empresários e parlamentares em busca de apoio. A maior dificuldade presidencial, entretanto, estará em convencer companheiros de partido, ainda presos a idéias que implicam ampliar despesas e reduzir o superávit primário, desprezando o nefasto efeito que se seguiria, de juros, déficit e dívida bem maiores que os atuais. Se o próprio Lula ainda precisa de algum estímulo, ele estará em perceber que é a chance de promover o seu tão sonhado e adiado espetáculo de crescimento.