Título: Alento em meio à crise
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/06/2005, Notas e Informações, p. A3

Em mais um dia acabrunhante, em que o governo e o PT só fizeram dar ¿tiros no pé¿ ¿ o que o presidente Lula disse que queria impedir que seu partido fizesse, alheio ao fato de que ele tem sido o primeiro a dispará-los ¿, uma decisão alentadora foi tomada em Brasília em defesa da ordem democrática. Trata-se do veredicto do Supremo Tribunal Federal (STF) que, por 9 votos a 1, invalidou o ato do então presidente do Senado, José Sarney, de impedir a instalação da CPI dos Bingos, no ano passado, porque os partidos governistas se haviam recusado a indicar os seus representantes no colegiado. Talvez seja pedir demais ao presidente Lula que se inspire nessa decisão ¿ que assegura o direito das minorias parlamentares ¿ e mude de atitude em relação à crise desencadeada pelas denúncias de corrupção. Se outros motivos não houvesse, ao menos para exercer o papel de guardião das instituições, que ele mesmo invocou no recente discurso do ¿cortar na própria carne¿ e do ¿não deixar pedra sobre pedra¿, o presidente deveria guardar a distância devida da confrangedora cena política, cada vez mais empestada pelos eflúvios da mercantilização do apoio político. Em vez de resguardar a autoridade presidencial e deixar que as investigações sigam o seu curso, no Congresso e nas instâncias do Executivo chamadas a apurar as acusações de negócios escusos nos Correios e a sórdida história do ¿mensalão¿, o presidente metralhou o próprio pé, para insistir na sua imagem, ao se reunir no Planalto, por sinal na mesma mesa a que têm assento os seus ministros, com os pregoeiros da teoria conspiratória do ¿golpe das elites¿, capitaneados pelo líder do MST, João Pedro Stédile, campeão da causa da desestabilização não apenas de governos, mas da própria ordem política e econômica que explicitamente abomina. O presidente envia um sinal inquietante ao País ao permitir que a sede do governo ¿de todos os brasileiros¿, como ele não se cansa de repetir, seja convertida em embandeirada trincheira para os radicais culparem a oposição e a imprensa pelo que não fizeram ¿ forjar denúncias para desestabilizar o governo. Não menos inquietantes, a propósito, foram a rentrée do ex-ministro José Dirceu na Câmara, escoltado por uma falange de agressivos partidários, também embandeirados, e o ataque a uma equipe da TV Globo às portas do PT em São Paulo. É diante desse pano de fundo ¿ que não augura nada de bom para o desenrolar da crise ¿ que a sentença do STF assume uma dimensão ainda maior do que teria numa conjuntura menos crítica. Ela não apenas é ¿talvez a mais importante decisão já tomada pelo Supremo com relação ao Congresso¿, como observou o senador gaúcho Pedro Simon, mas é também uma barreira intransponível às tentativas de qualquer governo de tolher o direito do Legislativo de apurar escândalos. Quando estourou o escândalo do Waldogate ¿ com o vídeo que mostra o assessor parlamentar da Casa Civil, Waldomiro Diniz, então presidente da Loteria Estadual fluminense, extorquindo um figurão do submundo da batota ¿ o Planalto fez tudo e mais alguma coisa contra a abertura de um inquérito parlamentar para averiguar, além das eventuais traficâncias do amigo e protegido do ministro Dirceu no governo federal, as ligações espúrias entre políticos, autoridades e o baronato do bingo. Embora mais de 1/3 dos senadores ¿ 35 em 81 ¿ tivessem assinado o requerimento da CPI proposta pelas oposições, o presidente do Senado à época, José Sarney, deixou de cumprir o dever regimental de nomear os representantes dos partidos que deixaram de fazê-lo exatamente para travar o inquérito. A decisão de Sarney era o que o governo dele esperava, apostando, provavelmente, que a Justiça se consideraria incompetente para se pronunciar sobre os recursos que lhe seriam encaminhados. Mas o Supremo não podia ficar indiferente em face de uma tentativa de impor ¿a ditadura da maioria¿, como observou o ministro Joaquim Barbosa. Doravante, bem faria o presidente se mantivesse à mão o voto do relator Celso de Mello: ¿O regime democrático não tem condições de subsistir quando as instituições políticas do Estado falharem em seu dever de respeitar a Constituição e as leis pois, sob esse sistema de governo, não poderá jamais prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento, de um só grupo ou, ainda, de uma só instituição.¿