Título: A guerra do pneu velho
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/06/2005, Notas e Informações, p. A3

O Brasil vai enfrentar uma batalha na Organização Mundial do Comércio (OMC) para defender o direito de não ser a lixeira dos pneus velhos de outros países. Será uma das maiores disputas judiciais na OMC e pela primeira vez o governo brasileiro terá a defesa ambiental como justificativa, comentou o diplomata Roberto Azevedo, coordenador-geral de contenciosos para o Itamaraty. Os dois contendores tomaram posição na quarta-feira. Em Genebra, a União Européia (UE) apresentou queixa contra o País, acusando-o de violar as normas internacionais. Em Brasília, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) decidiu propor um projeto de lei contra a importação de pneus usados. Essa importação é proibida por um decreto-lei de 1996, mas, apesar disso, o produto continua a entrar no Brasil legalmente. Empresários interessados no comércio de pneus ¿meia-vida¿ ou reformados têm conseguido na Justiça liminares para importar dos países mais desenvolvidos. Também têm entrado pneus do Uruguai, por causa de uma determinação do Tribunal Arbitral do Mercosul. Por essa decisão, o Brasil foi levado a aceitar a importação anual de até 130 mil pneus reformados no Uruguai. Os europeus argumentam que, por determinação da OMC, o tratamento dos pneus reciclados, no comércio internacional, deve ser o mesmo dos produtos novos. Além disso, protestam contra o que descrevem como política discriminatória do Brasil, que permite a recauchutagem de pneus no mercado interno e ainda aceita produto proveniente do Mercosul. A disputa será provavelmente complexa, em termos técnicos, e o Brasil deverá recorrer pela primeira vez a argumentos de proteção ambiental. Esses argumentos deverão valer tanto quanto aqueles que fundamentam a decisão européia de proibir, a partir de 2006, o armazenamento de pneus usados no território de seus 25 países. A partir do próximo ano os sócios da UE serão forçados, por uma norma comunitária, a despejar esse tipo de lixo noutros países. Já adotam uma política desse tipo há muitos anos e o próximo passo será radicalizá-la. Parece difícil, com base nas informações conhecidas até agora, um entendimento entre brasileiros e europeus nas consultas preliminares. Sem esse acordo, o passo seguinte será a formação de um painel para julgamento. Os juízes terão de explicar, com base em argumentos legais, por que outros países terão de aceitar um resíduo que os europeus serão proibidos de guardar em seu território. Uma decisão a favor da UE implicará uma discriminação moralmente insustentável. Uma das partes terá o direito, em nome da proteção de seu ambiente, de forçar a outra a manter seu mercado aberto a um lixo destinado especialmente a países de Terceiro Mundo. A posição do governo brasileiro contra a importação de pneus usados é mais razoável que a decisão européia de não armazenar esse resíduo em seu território. É muito mais razoável, também, que a tentativa dos europeus de oficializar, com argumentos ambientalistas e outras ¿considerações não comerciais¿, novas formas de protecionismo agrícola. Essa tentativa tem caracterizado a atuação da UE na Rodada Doha de negociações comerciais. As intenções protecionistas, nesse caso, são indisfarçáveis. Não se pode fazer a mesma afirmação sobre as preocupações manifestadas pelo governo brasileiro no caso dos pneus. Essas preocupações, que já haviam resultado no decreto de 1996 e em medidas adicionais, ganharam maior ressonância com a atuação da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Ela participou como convidada especial da reunião em que a Camex decidiu propor o projeto de lei. Os europeus terão de seu lado, no entanto, um grupo de empresários brasileiros. Esse grupo tem recorrido à Justiça para continuar importando pneus de segunda mão e tem exercido um eficiente trabalho de lobby em algumas áreas políticas. Esse trabalho resultou na apresentação do Projeto de Lei nº 216/2003, assinado pelo senador Flávio Arns (PT-PR) e apoiado pelo governador Roberto Requião (PMDB-PR) ¿ que assim confirma a sua tradição de trabalhar contra o interesse nacional. Se o projeto for aprovado, a importação será liberada e o Brasil será oficializado como lixeira de carcaças do mundo rico.