Título: Novo primeiro-ministro
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Fonte: O Estado de São Paulo, 27/06/2005, Notas e Informações, p. A3

As voltas que o mundo dá! Em dezembro de 2002, antes de assumir a Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva cancelou acordo costurado por seu homem de confiança, José Dirceu, para conseguir o apoio do PMDB para o governo, que assumiria no mês seguinte. Depois de oferecer ao presidente nacional peemedebista, deputado Michel Temer (SP), duas polpudas pastas ministeriais - de Minas e Energia e Integração Nacional -, o então principal articulador político da base governista a ser empossada no Congresso viu-se obrigado a retirar a oferta. E ainda sob a alegação de que o governo precisava preservar o patrimônio ético petista, incompatível com a sólida tradição fisiológica do PMDB, criado para resistir à ditadura, mas que virou uma confederação de próceres regionais, muitos dos quais contaminados pelos piores vícios de nossa cultura política. Sabem os políticos profissionais, contudo, que a deusa da História cultiva a ironia, às vezes com requintes de perversidade. Ultrapassada a primeira metade de seu percurso na chefia do governo, o presidente da República viu-se obrigado a mandar de volta para a Câmara dos Deputados seu braço direito (no caso, seria melhor chamá-lo de esquerdo), o mesmo José Dirceu que costurara a aliança com os peemedebistas no período da transição. Fê-lo, aliás, pela falta de cerimônia com que este criou problemas para o governo e para o chefe, deixando pegadas suspeitas em sua passagem pela chefia da Casa Civil.

E, para a ironia ser completa e ainda mais perversa, o papel de primeiro-ministro informal, que este exerceu em 30 meses de governo, aparentemente está sendo transferido para o ex-presidente José Sarney, cujos préstimos à gestão petista podem ser aferidos por sua recusa em indicar os membros da CPI para investigar o Waldogate, escândalo cujo protagonista, Waldomiro Diniz, fora companheiro de quarto e subordinado de Dirceu.

A mudança - palavra aqui usada num sentido que nada tem a ver com o prometido em palanque na campanha por Lula - não podia ser mais radical nem mais simbólica. O "comissário" Dirceu, aficionado de métodos stalinistas no controle férreo da disciplina no partido que o presidente fundou, participou da luta armada contra a ditadura militar, que teve em seu "xará" Sarney um aplicado serventuário com mandato parlamentar. Preso e trocado por um embaixador seqüestrado por "companheiros de armas", como ele definiu sua sucessora no poderoso posto, Dilma Rousseff, o ex-chefe da Casa Civil foi levado às cordas no ringue político por um ex-aliado que atraíra à base política do governo, o presidente nacional licenciado do PTB, deputado Roberto Jefferson (RJ).

Enquanto isso, o ex-arenista, que já foi presidente da República por um golpe do destino (a morte do titular da chapa e da esperança nacional, Tancredo Neves), tornou-se o interlocutor mais confiável de Lula no PMDB, partido antes tido como fisiológico, mas cujas bancadas no Congresso não têm que se preocupar com a caçada aos corruptos aberta com a denúncia do "mensalão" por Jefferson.

Em apoio à decisão presidencial é possível argumentar que não lhe restam opções à escolha. Afinal, PP e PL são alvos preferenciais dessa caçada, pois seus filiados são os principais acusados de receberem a mesada que seria paga pelo publicitário Marcos Valério por ordem do tesoureiro petista Delúbio Soares. Mas também não parece uma escolha tão cômoda assim. Embarcado a contragosto no PMDB, porque não podia compor na chapa de Tancredo se continuasse filiado ao PFL, em que sua filha Roseana ainda milita, Sarney está cada vez mais isolado no partido: Renan Calheiros (AL), seu sucessor na presidência do Senado, emite nítidos sinais de desconforto com a própria condição de governista. O presidente nacional, Michel Temer, continua querendo impor a decisão da contestada (pelos governistas) convenção que decidiu pelo afastamento do governo enquanto negocia ministérios com Lula. Só que na condição oposta da de 2002: faz exigências, sendo a principal delas a liberdade para apresentar candidato próprio à eleição presid encial de 2006, posto em que o donatário da capitania fluminense do PMDB, Anthony Garotinho, está de olho, assumindo uma posição francamente hostil a Lula que, neste caso, parece estar "no mato sem cachorro".