Título: Um pólo energético
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/06/2005, Economia & Negócios, p. B2

Outros países tomaram a iniciativa antes e construíram uma história de integração bem-sucedida. O Mercosul veio depois, mais como tentativa de repetir o sucesso da Europa e de outros centros do que para resolver problemas. Mas, até agora, parece ter criado mais problemas do que soluções. Reunião de cúpula do Mercosul, que tantas vezes foi cenário para brindes com champanhe e comemoração de feitos mais retóricos do que práticos, desta vez refletiu mais preocupação do que exuberância. Em Assunção, há dez dias, o presidente Lula, sempre tão confiante quando fala sobre os destinos do bloco, preferiu reconhecer que o clima é de mal-estar. E mesmo essa afirmação chegou a ser entendida como xerox da "malaise" que os observadores estão identificando na União Européia.

No Mercosul as coisas não andam. Paulo Saab é o presidente da Eletros, órgão que defende interesses das empresas da Zona Franca de Manaus. Ele lista as críticas mais gritantes: "Nada menos que 1.650 normas aprovadas pelos presidentes e representantes dos quatro sócios não foram implementadas; grande número das tarifas aduaneiras acordadas não é observado; não há código aduaneiro; qualquer variação no fluxo comercial é tratada como invasão de mercado e as cláusulas de livre comércio estão sempre a perigo; a insegurança jurídica afugenta os investidores..."

É nesse clima de abatimento e de observações ressentidas de que o vizinho está estragando tudo que surge a idéia de criar na área um pólo energético. Parece outra elucubração: não conseguimos nem garantir o livre fluxo de carne de frango e de sandálias havaianas e vem mais essa demonstração de grandeza...

No entanto, pela primeira vez, os sócios do Mercosul e adjacências podem estar diante de um foco que mude tudo. A União Européia não surgiu porque meia dúzia de visionários resolveu juntar os cacos de duas guerras mundiais e construir um clube que a matança de milhões de pessoas não conseguiu fundar. Começou em 1952 para resolver um problema prático: garantir o suprimento de carvão e aço. A empreitada deu certo e foi sobre esses alicerces que outras paredes se ergueram.

Nenhum país do Cone Sul é auto-suficiente em energia ou tem uso para suas fontes fora da zona. Já nos anos 70, o Brasil teve de equacionar sua matriz energética com suprimentos de Itaipu, que exigiram a participação do Paraguai. A Argentina (com Yacyretá) navegou nas mesmas águas e ainda precisa de suprimentos de energia elétrica do Brasil. Não fosse a iniciativa de Brasil e Argentina, o Paraguai não teria como aproveitar seu potencial energético. O Chile depende de fornecimentos de energia argentina. Brasil e Argentina precisam do gás da Bolívia e do Peru, que não terão o que fazer com esse gás se não o venderem a seus vizinhos.

Este é um terreno minado. O Chile tem pendências históricas com Peru e Bolívia e dos entreveros com a Argentina (Canal de Beagle) guarda cicatrizes. O Peru não é ainda território inteiramente pacificado. De quando em quando, irrompem ações do Sendero Luminoso ou de seus herdeiros. E a Bolívia está em pé de guerra civil.

Enfim, parece difícil que dessa conflagração emerja um pólo energético. Mas quem sabe se possa pensar diferentemente e, por força do atendimento de interesses e não de sonhos, nasça uma rede de infra-estrutura energética sobre a qual se ergam, em seguida, novas cadeias produtivas. Nessas condições, o pólo energético pode afinal abrir caminhos de integração e, a partir daí, de solução de conflitos - como aconteceu com a Comunidade Européia do Carvão e do Aço, o começo de tudo.