Título: Ora, a culpa é da Abin
Autor: Mauro Marcelo de Lima e Silva
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/06/2005, Nacional, p. A8

A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ora tem sido a undécima versão da Geni, de Chico Buarque. Joga pedra na Geni. Joga pedra na Abin. É conveniente, para setores que se dizem politicamente "esclarecidos" - mas jamais esclarecíveis - lembrarem agora da Abin e a apontarem como bode expiatório, para justificar irregularidades, arapongagem ou atos de corrupção. É francamente mais fácil, e politicamente mais cômodo, atribuir tais responsabilidades à Agência. E, assim, nesse processo, tais corifeus se postam na condição de vítimas perante a opinião pública. Isso (para dizer o mínimo) sem disporem de quaisquer provas. Pura insídia. Esse tem sido o perverso rosário no caso dos Correios. Sim: é possível até que alguém rotule todo o "imbróglio" de conspiração da Abin. Quem sabe com suspeita de ajuda da CIA, ou seria de Cuba? É mais fácil também, e talvez lucrativo, que a história seja repassada ou vendida antes de qualquer verificação cuidadosa. Não podemos esquecer que o senso comum é facilmente influenciável e costuma interagir a partir de enredos de novelas e filmes, notícias de jornais e mesmo livros de ficção, repletos de "síndromes de conspiração". Ingredientes não faltam. Eis, portanto, um rematado roteiro hollywoodiano.

A Abin não é o SNI. Permanece a confusão entre as atividades da Abin e as do antigo SNI. Confusão essa facilitada (ou estimulada) por gestos teatrais e tiradas mirabolantes. Mas a realidade é bem outra. Sejamos mais profissionais. Basta de detetives amadores! Tudo o que tem sido dito e publicado sobre a participação da Abin no caso dos Correios não reproduz com fidelidade nosso trabalho. A atuação do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), tendo a Abin como seu órgão central, tem por finalidade fornecer subsídios ao presidente da República e a outros órgãos do governo nos assuntos de interesse nacional. Desse modo, é realizado amplo e permanente acompanhamento sobre fatos e situações com influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado, ou seja, nossas atribuições vêm sendo desempenhadas exclusivamente, repito, exclusivamente na defesa dos interesses do Estado do brasileiro.

O foco, a finalidade, do trabalho da Abin não é obter provas, mas informações de interesse do presidente da República. A prova pode ser uma informação. Mas a informação não é necessariamente uma prova. Essa é a grande diferença entre os trabalhos desenvolvidos pela Abin e os da Polícia Federal. Nós buscamos a informação. Eles, a prova. Na busca dessas informações contatamos fontes, informantes, buscamos o dado negado, trabalhamos no "border line" da legalidade, mas sem ultrapassamos a linha. A Abin estava agora, como sempre esteve, na sua missão legal de coleta de informações, inclusive sigilosas, para a produção de conhecimento e, nesse trabalho, conta com a valiosa sinergia de dezenas de instituições integrantes do Sistema.

Nesse mister, observamos cuidadosamente nosso papel de produzir subsídios para o processo decisório governamental. Assim, toda a coleta e análise de dados pertinentes não implicou, em momento algum, sobreposição a atividades de investigação policial. Ao contrário: buscamos sempre a cooperação e a parceria com outras instituições. Não existe competição entre o trabalho desenvolvido pela Abin e pela PF. O que há são casos pontuais de ignorância explícita sobre o real papel de nossa função, constantemente - e erroneamente - rotulada de arapongagem.

É nesse escopo que as menções do deputado-ator Roberto Jefferson à Abin, em seu discurso-show e entrevistas, não merecem atenção. Trata-se da mais pura e cristalina teoria conspiratória. Forjada, com arroubos teatrais de quem conhece a fina retórica advocatícia, para confundir a opinião pública e, em particular, a mídia. É evidente que jogar a culpa na Abin é uma boa saída. Tudo não passa de armação da Agência: eis o eixo do mal prodigalizado pelo ator-advogado-deputado em seu teratológico depoimento.

De fato, eis uma saída engenhosa, um ardil agudo, para desviar a atenção. O que a mídia e os demais formadores de opinião de nosso país devem se atentar é em não serem atraídos pelo canto da sereia, de alguém que, no desespero, se utiliza de acusações levianas e irresponsáveis contra uma instituição séria, que se pauta pela irrestrita observância dos direitos e garantias individuais e dos princípios éticos que regem os interesses e a segurança do Estado.

Mas falta um detalhe importante. Quem é que está tentando desviar a atenção do foco do problema? É a Abin? Certamente não. A Agência busca a verdade. Quem tenta obscurecer a percepção da realidade é aquele que em passado não muito distante se beneficiava de uma situação amplamente condenada pela sociedade brasileira. Apesar do "show teatral", não pactuamos com atitude messiânica utilizada para iludir os incautos sobre a verdade dos fatos.

Ele usou a desinformação, que podemos traduzir por atos de defesa que utilizam dados falsos, mesclados com informações verdadeiras, a fim de dar crédito. São as meias-mentiras e meias-verdades. Ardilosa trama. Mas esse tipo de estratagema não configura novidade. Sabe-se, no mundo do processamento de informações de Inteligência, que uma das mais insinuantes feições da trama farsesca consiste justamente neste ardil: erigir um corpo temático, composto de supostas verdades, todas passíveis de serem checadas, e polvilhar rastilhos de mentira ao meio do construto - quase sempre um discurso repleto de histrionismos e bravatas. O produto final é um prato a ser consumido quente, pela mídia, e um prato a ser servido frio, pelo denunciante, sobretudo porque quase sempre esse tipo de gente resolve abrir a boca porque são sabedores de que, mais cedo ou mais tarde, seriam pespegados metendo os pés pelas mãos.

Esse ato radical de teatro impressiona menos pelo seu artificialismo do que pelos efeitos desastrosos que causa na democracia: um país pode assim ser paralisado, até mesmo nas raias da economia, pela ânsia, convertida em anseio popular, e até popularesco, de ver-se checado exatamente o que o denunciante falou.

Portanto, desconstituir a calúnia é um ato legítimo de investigação e de Inteligência. É assim que o aparato investigatório, de uma CPI ou da própria polícia e sistema judicial, vê-se ora empenhado em medir a real extensão do que tem se falado por aí. Mas tais denunciantes histriônicos conhecem bem o riscado e o balé da coreografia do poder. Basta uma acusação estar sendo investigada para que o ator lance no ar novas dúvidas e acusações ainda mais agudas. Como disse o filósofo, há dois tipos de mentira: a que não chega até a verdade e aquela que ultrapassa a verdade. Embora nada saibam de filosofia, tais denunciantes conhecem, de instinto, o mister de embaralhar a verdade dentre as cartas marcadas pela falsidade.

Converter uma fricção rotineira numa teoria conspiratória foi o quesito mais premiado à mídia pelo deputado. Pouco faltará para que seja, também, o mais condenável pela lei, pela ética e pelos fatos. Qualquer tolo pode dizer a verdade, mas para mentir é preciso muita imaginação.

Mauro Marcelo de Lima e Silva é delegado de polícia em exercício como diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin)