Título: Crônica de um desastre
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2005, Notas e Informações, p. A3

Mesmo que, ao fim e ao cabo de todas as investigações, fique irrefutavelmente comprovado que o presidente Lula não teve 1 grama de envolvimento nos escândalos de corrupção que macularam de forma indelével a imagem de pureza apregoada por seu partido, ele próprio caminha a passos largos para figurar, na esfera política, entre os mais desastrados governantes brasileiros de todos os tempos. Destinada, em última análise, a evitar que o Planalto soçobre na atual crise, impedindo o presidente de chegar à campanha sucessória em posição de força, a articulação para atrair todas as alas do PMDB ao pretendido governo de coalizão ¿ decerto fadada ao fracasso ¿ é apenas a nova evidência de um amadorismo político que a sombria conjuntura só faz acentuar.

No episódio, incorrendo no que o mais neófito dos políticos sabe ser um erro crasso ¿ tornar público um entendimento capaz de não se consumar, em vez de só fazê-lo se e quando as negociações, conduzidas com a indispensável discrição, tiverem dado certo ¿, o presidente se expôs a uma situação três vezes humilhante.

Primeiro, por terem sido divulgadas as condições impostas pelo PMDB para começar a conversar ¿ na realidade, o equivalente aos termos de uma rendição incondicional. Incluem, notadamente, a aceitação de que o partido terá candidato próprio ao Planalto e a exigência de que o PT não tenha os seus nos Estados cujos governadores peemedebistas concorram à reeleição.

Segundo, por ter-se também divulgado que o presidente aceitou o diktat da mesma agremiação à qual ele se recusou a dar dois ministérios ¿ como lhes prometera o futuro ministro José Dirceu, entre a eleição e a posse ¿ porque isso ofenderia o seu ¿patrimônio ético¿ (que presumivelmente não se ofendeu com a inclusão do PP e do PTB na base aliada, nem com o inchaço dessas siglas promovido pelo mesmo Dirceu, possivelmente com argumentos tirados das malas do publicitário Marcos Valério).

A terceira e pior humilhação foi o vazamento do comentário do presidente peemedebista Michel Temer a Lula de que ele corria o risco de dar quatro ministérios ao partido ¿sem ganhar mais do que já tem¿, porque, em nome da ¿governabilidade¿, as suas bancadas no Congresso não o deserdariam nessa hora difícil. Ou seja, muito por nada.

É o que vem dizendo o governador gaúcho Germano Rigotto, contrário a que o seu partido aceite o desesperado convite de Lula. ¿A hora é muito mais para qualificar o Ministério do que para formar base majoritária em troca de cargos¿, disse ele ao Estado: ¿A barganha não é o caminho.¿ É o que pensam ainda os seis outros governadores do PMDB e, segundo Temer, a maioria dos seus 85 deputados federais. Apenas no Senado, sob a batuta do atual presidente Renan Calheiros e do antecessor José Sarney, 20 dos 23 peemedebistas acederam à oferta de Lula. Ao mesmo tempo, sem evidentemente pleitear cargos, o PSDB, pela voz do governador mineiro Aécio Neves e a inspiração do ex-presidente Fernando Henrique, ¿estendeu a mão¿ ao Planalto para o estabelecimento, de comum acordo, de uma ¿agenda positiva¿.

Quando Lula assumiu, praticamente todas as mãos se estendiam na sua direção e não havia clima algum para que a oposição lhe apontasse o indicador com o fim de criticá-lo. Apesar da transfusão maciça de parlamentares do PSDB e do PFL para as bancadas companheiras de viagem do PT na Câmara, só em fevereiro de 2004, quando rebentou o Waldogate, a oposição passou a investir vigorosamente contra o governo O retrospecto, portanto, é o de uma imensa e auto-infligida evasão de capital político. A descida aos infernos começou efetivamente quando Lula permitiu que se digladiassem, no Planalto e no Congresso, partidários e adversários da reeleição dos presidentes das Mesas. Acentuou-se quando se enredou na malograda reforma ministerial de fins de 2004 e chegou ao auge quando, por pura incompetência, não conseguiu evitar que o PT perdesse o comando da Câmara.

O único efeito positivo dessa crônica de desastres é que o presidente foi obrigado a suspender a permanente campanha reeleitoral que, como dizia o ex-ministro Cristovam Buarque, em artigo de ontem na Folha de S.Paulo , começou ¿desde o primeiro dia¿ do seu mandato. Ficou sem ministro da reeleição, vê a cúpula do partido lançada às cordas pelos escândalos e perdeu qualquer condição de trocar ministérios pelo apoio do PMDB em 2006. O prematuro palanque presidencial está na oficina.