Título: Quebra de patentes
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2005, Notas e Informações, p. A3

Diante da negativa do laboratório americano Abbott de reduzir o preço do Kaletra , um remédio anti-retroviral utilizado por 23,4 mil pacientes de aids no País, o presidente Lula baixou no final de semana uma portaria autorizando a quebra de sua patente, dentro de dez dias. A iniciativa permitirá à Fundação Oswaldo Cruz vendê-lo por US$ 0,68 a unidade, enquanto o Abbott o comercializa por US$ 1,17.

Com essa medida, que se posta em prática resultará numa perda estimada em R$ 130 milhões para o laboratório, só no primeiro ano, o governo também pretende dobrar os laboratórios Gilead e Merck, que produzem o Tenofo vir e o Efavirenz , respectivamente. Junto com o Kaletra , esses medicamentos consomem 66% do orçamento da União para a compra de anti-retrovirais.

A portaria é um instrumento de pressão. Como o Ministério da Saúde já havia proposto o licenciamento voluntário para a produção desses medicamentos, ele agora espera que os dois laboratórios acolham seu pedido. Caso contrário, suas patentes também serão quebradas.

Em nota à imprensa, o Abbott afirmou que a decisão das autoridades ¿não leva em consideração o que é melhor para os pacientes brasileiros, porque prioriza o desejo do governo de cortar custos da área de saúde, em vez da necessidade do paciente por novos e melhores tratamentos¿. No entanto, embora esse laboratório possa recorrer ao Superior Tribunal de Justiça e o governo americano possa pedir providências à Organização Mundial do Comércio (OMC), a iniciativa de Lula tem amparo legal.

Em 2001, o então ministro da Saúde, José Serra, introduziu em nossa legislação a figura da ¿concessão de licenciamento compulsório em casos de emergência¿. Como, segundo ela, o laboratório que não atender a certas condições de preço e fabricação em território nacional perde a exclusividade da patente, os Estados Unidos pediram à OMC a instalação de um painel de arbitragem para discutir a legalidade dessa medida.

Em sua defesa, o governo brasileiro levou o problema à ONU e à Organização Mundial de Saúde (OMS), o que lhe permitiu obter apoio político de vários países. Pressionados pela opinião pública internacional, alguns laboratórios reduziram em 2,5 vezes o preço de venda de seus medicamentos. Essa vitória levou o Brasil a propor aos organismos multilaterais uma resolução que, classificando como direito humano fundamental o acesso a remédios antiaids, permite a prática de preços diferenciados conforme o grau de desenvolvimento de cada nação.

Endossada por centenas de países, a proposta foi aprovada na ONU, na OMS e na OMC, o que levou os Estados Unidos a retirar sua queixa contra o Brasil. Em troca, o Brasil assinou um acordo com os Estados Unidos comprometendo-se a avisar as autoridades de Washington sobre eventuais licenças compulsórias de patentes registradas por indústrias farmacêuticas americanas. Foi com base nessa resolução e nesse acordo que o presidente Lula tomou a decisão de quebrar a patente do Kaletra , fabricado pelo Abbott.

Em momentos distintos, tanto Serra quanto Costa por diversas vezes recorreram a essa resolução e a esse acordo, para obter a redução de preços de medicamentos antiaids. Em todas as ocasiões, eles não precisaram ir ao extremo de quebrar patentes. As coisas mudaram em fevereiro deste ano, quando o governo do PT, criticado pela escassez de remédios anti-retrovirais distribuídos a pacientes de aids, propôs uma negociação ao Abbott, ao Merck e ao Gilead. Como eles se recusaram a ceder os direitos de produção de drogas, mediante pagamento de royalties, Lula decretou o licenciamento compulsório do Kaletra , na tentativa de levar o laboratório Abbott a baixar seus preços.

Desde que as normas da OMC sobre propriedade intelectual entraram em vigência, é a primeira vez que um país toma essa decisão no caso de medicamentos antiaids. Até agora, as outras duas quebras de patentes em matéria de fármacos haviam ocorrido nos casos do Viagra , pela China, e de um medicamento alemão que é referência no tratamento do antraz , pelos Estados Unidos.