Título: A pizza servida a frio na CPI `chapa-branca¿
Autor: José Nêumanne
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

Na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva referiu-se duas vezes à corrupção, em público. Primeiramente, em Luziânia (GO), jactou-se, perante um entusiástico grupo de pequenos agricultores, alguns dos quais militantes sem-terra, de não haver brasileiro com mais autoridade moral que ele para combater esse mal institucionalizado nas relações entre público e privado, entre nós. Depois, em cadeia de rádio e televisão, comedido e enquadrado por seu marqueteiro Duda Mendonça, baixou o tom e contou que a Polícia Federal (PF), em seu governo, já prendeu mais de mil suspeitos de malversarem o erário.

No primeiro caso, talvez seja útil, embora incômodo, lembrar que o fato de ele próprio se julgar imune ao pecado não o torna mais ético que o favelado que trabalha duro para ganhar magros caraminguás, resistindo ao canto da sereia do dinheiro fácil do crime organizado. Seu desabafo infeliz foi um acinte contra os milhões de brasileiros honestos que, sem bons empregos públicos nem aposentadorias privilegiadas, conseguem sobreviver a duras penas, como lembrou, em entrevista à Rádio Eldorado, o filósofo Roberto Romano. O maior comedimento do segundo discurso não tornou, contudo, as palavras de Sua Excelência mais próximas dos fatos. A detenção pela PF de mais de mil brasileiros (e ele não esclareceu se nessa conta estavam incluídos terríveis erros do exagero dos agentes, como parece ser o caso do Ibama, por exemplo) teria mais impacto se entre os inúmeros ¿bagrinhos¿ e raros ¿figurões¿ encarcerados figurassem dois protagonistas explícitos de suborno filmado, gravado e confessado: Waldomiro Diniz e Maurício Marinho.

Do segundo ainda é possível dizer, com alguma dose de razão, que foi pilhado há pouco tempo e, como vive o presidente a apregoar desde que foi empossado, ao contrário do o que fazia antes quando era da oposição (afinal, não é a coerência a ¿virtude dos imbecis¿, segundo Assis Chateaubriand, o Chatô ?), qualquer um tem direito a se defender.

Mas, e Waldomiro, hein? Pilhado com a boca na botija, o ex-subchefe da Casa Civil para Assuntos Parlamentares e ex-companheiro de quarto do comissário José Dirceu tem sido beneficiado por injustificáveis vantagens concedidas pela chefia. Não foi demitido ¿a bem do serviço público¿, como deveria tê-lo sido, mas pediu o próprio afastamento. E ainda flana entre superquadras e gôndolas de supermercados em Brasília.

Não valeria a prisão dele por outras mil? No entanto, apesar de já tê-lo feito três vezes, a elogiada PF não conseguiu produzir um inquérito sequer que o Ministério Público (MP) considerasse aceitável a respeito do caso específico, embora seja tão eficiente em outros.

Agora, com a grave crise política deflagrada pela propina paga a Maurício Marinho e agravada pela denúncia do ¿mensalão¿ pelo presidente nacional do partido governista PTB, Roberto Jefferson, talvez se exija mais que o preceito da mulher de César, segundo o qual não basta a pessoa pública ser , mas também há de parecer honesta. Só pode bater no peito e dizer que tem autoridade moral para combater a corrupção o governante que não se mostrar leniente com suspeitos em sua proximidade. Mas a viúva do ex-prefeito de Campinas Toninho do PT, por exemplo, pode ter motivos para duvidar de Lula quanto a esse quesito.

Pois seu marido foi morto quando denunciava irregularidades cometidas por um antecessor, Jacó Bittar, e a polícia e o PT acharam melhor aceitar como líquida e certa a hipótese de que o assassínio fora casual e cometido pelo quadrilheiro Andinho, em fuga.

Mas o presidente recusou-se a receber o abaixo-assinado que ela tentou entregar-lhe pedindo a reabertura do caso. Não seria o caso de assinar o papel, em vez de bater com a porta na cara da viúva do companheiro?

Pode ser que seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, nada tenha que ver com a máfia dos transportes públicos, considerada suspeita pelo MP de ter mandado matar o encarregado do projeto de governo em sua campanha eleitoral em 2002, Celso Daniel, então prefeito de Santo André.

Mas, se quer mesmo subir ao pódio do campeão contra a corrupção, o chefe do governo teria de liberar o rapaz para que ele pudesse, tranqüilamente e sem as obrigações do cargo que ocupa, dar explicações aos promotores, mesmo tendo a polícia do dr. Alckmin resolvido rápida e insatisfatoriamente o caso, classificando a execução do prócer como fruto da banalidade e do acaso. Ou não?

Prezando tanto a própria imagem impoluta, de que justificadamente se orgulha, o chefe do governo poderia ainda ter deixado que se instalasse a CPI dos Bingos, para deputados e senadores tentarem fazer o que os policiais subordinados ao criminalista Márcio Thomaz Bastos não têm logrado: investigar se, afinal, o dr. Waldomiro Diniz agia por sua própria conta e risco ou se obedecia a ordens de alguém de cima. Se não por outro motivo, até para evitar o vexame de ver um ano depois o Supremo Tribunal Federal considerar ilícitas as manobras para evitar sua instalação.

Da mesma forma, por menos confiáveis e mais golpistas que seus adversários da elite tucana e pefelista sejam, não havendo o que temer nos casos da corrupção dos Correios e do ¿mensalão¿, por que usar de tanto empenho e de tanto poder para permitir que o País inteiro tenha motivos mais que razoáveis para classificar a CPI da corrupção dos Correios de ¿chapa-branca¿, por acreditar que a pizza dela será servida a frio, antes de assar no forno? P. S. ¿ E, por fim, antes que me esqueça: quantos mesmo dos mil brasileiros presos pela PF continuam atrás das grades, hein, presidente?