Título: Um cientista que sabia o que medir
Autor: Fernando Reinach
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2005, Vida&, p. A28

São raros os cientistas que se dedicam a medir um único fenômeno. Mais raros ainda são aqueles que alteram o comportamento da humanidade com suas medidas. Charles D. Keeling passou a vida medindo a quantidade de gás carbônico na atmosfera. Foram suas medições que demonstraram que a quantidade de gás carbônico está aumentando e que levaram os governos a se comprometer em adotar medidas para controlar esse aumento, como o Protocolo de Kyoto. Em 1958, muito antes do surgimento de qualquer movimento ecológico, Keeling desconfiou que o gás carbônico (CO2) produzido pela queima do petróleo talvez estivesse se acumulando na atmosfera. Decidiu então medir como variava a concentração de CO2. Escolheu o topo de uma montanha no Havaí, longe das grandes fontes de emissão de CO2 , para fazer suas medidas. Instalou no pico do Mauna Loa um aparelho capaz de medir continuamente a quantidade de CO2 na atmosfera. Em 1958, na atmosfera, existiam 316 partes de CO2 para cada milhão de partes de gases. Durante os primeiros anos, ele descobriu que a quantidade de CO2 aumentava no inverno e diminuía no verão, refletindo a atividade das plantas, cuja fotossíntese depende da temperatura e da quantidade de luz.

A curva parecia uma montanha-russa. Foram mais de dez anos de medições contínuas para descobrir que a montanha-russa na verdade tinha a cada ano um pico um pouco mais alto que no ano anterior. Finalmente foi possível demonstrar que o CO2 realmente estava aumentando. Entre 1958 e 2002, os níveis de CO2 na atmosfera aumentaram 17%.

Os resultados de Keeling formam a base para toda a discussão sobre o efeito estufa e o aquecimento global. Apesar de ainda haver discórdia sobre como os níveis de CO2 influenciam o clima, o degelo das calotas polares e o aumento do nível dos oceanos, a veracidade dos dados de Keeling jamais foi posta em dúvida.

Na última década, a hipótese de Keeling foi comprovada através da análise da quantidade de CO2 presente em bolhas de ar retidas no gelo polar. Os cientistas analisaram bolhas retidas no gelo por centenas de anos e determinaram a quantidade de CO2 que existia na atmosfera antes do homem começar a queimar petróleo. O gelo dos furos feitos no Ártico revelaram que durante centenas de anos a concentração de CO2 não se alterou, só aumentando a partir do fim do século 19. A intuição de Keeling estava correta, o homem realmente está modificando a atmosfera da Terra.

A maioria das destruições do meio ambiente que observamos é de fenômenos locais, que ocorrem em um período de tempo relativamente curto. É o caso do desmatamento da Amazônia, a poluição de um rio ou a mudança da qualidade do ar em uma cidade. Mas o que realmente põe em risco a sobrevivência do homem são os fenômenos globais, que ocorrem lentamente e são difíceis de reverter. Keeling foi o primeiro cientista a medir de maneira incontestável um desses fenômenos. Ele deve ter sido um homem realizado, tendo vivido o suficiente para ver a maioria dos países assumir o compromisso de combater o aumento do CO2. Mas provavelmente morreu decepcionado. Seu país, os EUA, o maior consumidor de petróleo, ainda se recusa a assinar o Protocolo de Kyoto.