Título: O que o presidente precisa fazer para evitar o atoleiro
Autor: John F. Kerry
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2005, Internacional, p. 0

Já passou a hora de acertarmos no Iraque. O governo Bush convida ao desastre com seu rumo atual - um rumo sem estratégia realista para a redução dos riscos para nossos soldados e o aumento das chances de sucesso. A realidade é que as escolhas do governo Bush transformaram o Iraque em algo que ele não era antes da guerra - um celeiro de jihadistas. Há hoje entre 16 mil e 20 mil jihadistas e o número aumenta. O governo - e, tragicamente, nossos soldados, que pagam o preço a cada dia - caiu numa armadilha que ele mesmo preparou. Sair desta armadilha não será fácil, mas temos a obrigação, perante nossos soldados, de fazer nosso máximo.

Nossa missão no Iraque é mais difícil porque o governo ignorou o conselho dos outros, agiu praticamente sozinho, subestimou a probabilidade e o poder da insurgência, enviou poucos soldados para controlar o país, destruiu o Exército iraquiano por meio da erradicação do baathismo, deixou de proteger depósitos de munição, recusou-se a reconhecer a urgência do treinamento das forças de segurança iraquianas e não fez planejamento para o pós-guerra. Um pouco de humildade ajudaria muito - ao lado de uma estratégia para o sucesso.

Assim, o que o presidente deveria fazer? A primeira coisa que ele deveria fazer é dizer a verdade ao povo americano. Conversas otimistas sobre "os últimos suspiros" da insurgência levam a expectativas frustradas em casa. O presidente também precisa anunciar imediatamente que os EUA não terão uma presença militar permanente no Iraque. Pôr fim às suspeitas de que a ocupação é indefinida é crucial para minar o apoio à insurgência.

Ele ainda deveria insistir para que os iraquianos estabeleçam um processo político verdadeiramente inclusivo e cumpram os prazos para a redação da Constituição e a realização de eleições em dezembro.

Bush também precisa intensificar o treinamento dos soldados iraquianos e garantir que o governo iraquiano tenha o orçamento necessário para mobilizá-los. A administração Bush e o governo iraquiano precisam parar de usar a exigência de que as tropas sejam treinadas no Iraque como desculpa para recusar ofertas de colaboração do Egito, Jordânia, França e Alemanha.

O governo precisa elaborar imediatamente um plano detalhado com marcos e prazos claros para a transferência das responsabilidades militares e policiais para os iraquianos depois das eleições de dezembro. O plano prepararia o terreno para o início da retirada das tropas americanas.

O Iraque, é claro, precisa desesperadamente de um Exército nacional unificado, mas antes de possuir um - algo que, segundo dizem agora nossos generais, pode levar mais dois anos - deve fazer uso de suas milícias tribais, religiosas e étnicas como a curda Peshmerga e a xiita Brigada Badr para oferecer proteção e ajudar na reconstrução. Isso deveria ser encorajado pelo governo Bush.

A administração também precisa trabalhar com o governo iraquiano a fim de estabelecer uma força multinacional para ajudar a proteger as fronteiras. Tal força, se aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, poderia atrair a participação de vizinhos do Iraque e de países como a Índia.

Pôr em operação forças de segurança capazes é crucial, mas isso não bastará para dar fim à insurgência, como a administração Bush nos faria acreditar. Limitada pela falta de planejamento no início e pelas previsões excessivamente otimistas sobre a reconstrução do Iraque, a administração deixou de dedicar igual atenção ao trabalho com o governo iraquiano nas frentes econômica e política. Conseqüentemente, a reconstrução se arrasta até mesmo no sul xiita e no norte curdo, relativamente seguros. Se os iraquianos, particularmente os sunitas, que temem ser privados de seus direitos, virem a eletricidade fluindo, empregos sendo criados, estradas e sistemas de esgoto sendo reconstruídos e um governo democrático sendo formado, a sedução da insurgência vai decair.

Os próximos meses são críticos para o futuro do Iraque e nossa segurança. Se Bush não der esses passos, tropeçaremos no caminho, com nossas tropas correndo maiores riscos, o número de baixas aumentando, a paciência do povo americano se esgotando e o espectro de um atoleiro nos fitando nos olhos. Nossos soldados merecem uma liderança à altura de seu sacrifício.