Título: O futuro da indústria de medicamentos
Autor: Marcos Oliveira
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2005, Economia & Negócio, p. B2

O governo comemorou com entusiasmo alguns resultados econômicos de 2004, o crescimento do PIB, uma certa recuperação da produção industrial e, sobretudo, o bom desempenho da balança comercial, com expressivo saldo alcançado nas nossas contas comerciais externas. Tudo bem, mas é apenas "mais do mesmo", as perspectivas e os desafios do futuro continuam desconsiderados. O setor químico participou da festa, com um crescimento das vendas de 37%, em dólares - um desempenho bastante significativo. O crescimento da produção foi de apenas 6,7% sobre 2003, o que indica uma recuperação de preços, e não apenas crescimento físico. O segmento dos farmacêuticos colheu bons resultados também: as vendas de 2004, até novembro, já superavam em 18% as vendas totais de 2003. Em quantidade foram 9,7% maiores que as de 2003.

Quando se analisa o desempenho do setor químico do ângulo do comércio exterior é que as cores se tornam menos róseas. O déficit nas nossas transações comerciais com o exterior é ainda acachapante, refletindo a fragilização de um setor industrial chave e que já teve um melhor desempenho em passado não muito distante. Nos segmentos finais da química industrial e da química fina, o déficit no nosso comércio internacional de intermediários de síntese - matérias-primas para os segmentos finais de medicamentos, defensivos, corantes, etc. -, ainda sem os números de dezembro, já supera os US$ 2 bilhões. As importações de medicamentos a granel e acabados bateram na casa de US$ 1 bilhão, ou seja, cerca de 20% dos medicamentos vendidos no País foram importados prontos. No início da década de 90, essa parcela estava em torno de 5%.

É verdade que o governo incluiu o setor de fármacos e medicamentos como item prioritário na sua política de desenvolvimento industrial, mas tal decisão tem estado, até agora, mais na retórica que na ação. Muitas das medidas práticas que ajudariam a rapidamente impulsionar o desenvolvimento do setor esbarram na oposição dos gestores da política econômica, voltada toda ela para o atendimento dos compromissos com o capitalismo financeiro, ou na abulia desinteressada da classe política.

É pena, pois as ciências química e biológica vivem um excepcional momento de efervescência intelectual, de novas descobertas, de desenvolvimento de novos caminhos de atuação, da solução de velhos problemas como a invenção de novas terapias para doenças antes intratáveis, processos de produção menos agressivos ao meio ambiente, redução da dependência de matérias-primas não renováveis e muito mais. O notável avanço recente no conhecimento biológico projeta uma revolução no campo da química. Hoje, uma reação enzimática de base biológica é capaz de substituir, com vantagem, várias etapas da síntese de um produto realizadas até aqui por meio de reações químicas convencionais, algo apenas sonhado alguns anos atrás.

Há, nos meios acadêmicos e industriais do mundo, um reconhecimento amplo de que a estrutura tecnológica da indústria química de 2020 será substancialmente diferente da que tivemos no final do século passado, e este reconhecimento já foi absorvido pelos governos dos países mais avançados. Praticamente todos eles já têm algum tipo de programa estatal de apoio a novos investimentos industriais, de suporte ao desenvolvimento tecnológico empresarial nas áreas de fronteira da química e biologia. É claro que, numa época de mudanças, em que pesem as oportunidades, os riscos podem atingir níveis intoleráveis para o empreendedor privado, daí a parceria necessária com o Estado para deslanchar o processo. Esta é a lição que vem dos países mais desenvolvidos e que ainda não aprendemos.

O novo cenário que se desenha para o futuro da indústria química incorpora elementos para os quais o Brasil tem vantagens comparativas significativas, tais como a importância crescente da biomassa como fonte de matérias-primas, a excepcional base genética, seja vegetal ou animal, como fonte de conhecimento para a descoberta de novos produtos, uma razoável base acadêmica e um mercado final nada desprezível, para citar apenas alguns. Como não temos uma indústria convencional neste setor, poderíamos investir no novo sem lamentar a perda do antigo. Diante da inação do processo decisório, a sensação que fica é a da perda para a sociedade brasileira de uma excepcional oportunidade de desenvolvimento.

O tempo da ação está passando e o governo brasileiro se comporta como a Carolina da música de Chico Buarque. Só ele não vê.