Título: 'A crise política está na ante-sala das instituições'
Autor: Carlos Marchi
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/07/2005, Nacional, p. A9

A crise política já está "na ante-sala da crise institucional", adverte o cientista político Bolívar Lamounier. Para ele, o pecado original de Lula foi juntar a Casa Civil com a coordenação política. "Acabou sem uma e sem outra", observa. Ele ironiza a idéia de que "as elites" planejam um golpe contra o governo: as elites não têm razões para desestabilizar um governo que cumpre uma política econômica ortodoxa, explica. Lamounier acha que a crise vai redundar em muitas perdas de mandato e numa reformulação profunda dos partidos políticos. Eis a entrevista:

O "golpe das elites" existe?

Pessoas que esperavam muito mais do governo e que imaginavam que ele não se deixaria envolver pela corrupção foram buscar uma explicação para as denúncias. Quando você não quer aceitar a realidade, cria uma ficção para explicá-la. É claro que não há golpe nenhum. Falam em "elites". Que elite quer desestabilizar um governo que cumpre uma política econômica austera e ortodoxa, que obviamente beneficia o capital e o mundo financeiro?

A crise é política ou já ganha dimensão institucional?

Não é ainda institucional, mas ocorre no Congresso Nacional, no âmbito do poder. Está, portanto, na ante-sala da crise institucional. O grau de descrédito que atinge a Câmara dos Deputados, o PT e vários outros partidos e, potencialmente, o próprio Lula, coloca a crise política num diapasão muito elevado.

O senhor acha possível o mensalão?

Não quero prejulgar, mas acho muito difícil que tudo o que nós ouvimos seja ficção. Roberto Jefferson e outros teriam de ser romancistas de primeira para criar uma ficção tão impressionante. Então, pelo menos uma parte disso deve ser verdade, práticas eventualmente legais, mas imorais, envolvendo partidos da base aliada do presidente da República. O começo da crise, então, tem a ver com corrupção. Mas não é só. Nesta legislatura, 152 parlamentares trocaram de partido 237 vezes.

Esses números são inusuais para o padrão brasileiro?

Sem dúvida. De memória, diria que é pelo menos 50% acima do padrão. O estímulo à troca de partidos para formatar a base de apoio do jeito que eles queriam - não para o próprio PT, que o PT é "puro" - era conhecido antes de estourar a crise do mensalão. Temos, então, dois fios desencapados: a base aliada gelatinosa, amorfa, sem caráter e sem programa, que só se mantém unida por alguma recompensa; e as denúncias de corrupção que, se verdadeiras, teriam ocorrido de uma forma que acirrava a competição por espaços entre esses partidos.

Onde isso vai dar?

Se as investigações comprovarem essas denúncias e até coisas mais substanciais, muitas pessoas perderão o mandato e nós veremos uma reformulação profunda dos partidos políticos. Queira Deus que, indiretamente, não afete o próprio presidente da República. Se ficar comprovada uma participação mais material do ex-ministro José Dirceu, teremos uma dificuldade muito grande e, aí, sim, uma crise institucional.

Qual o principal erro de Lula?

O erro inicial, e o mais grave, de Lula foi a coordenação política. Ele colocou na Casa Civil um político grande demais para o cargo. José Dirceu não cabe no palácio, é como colocar um elefante numa bacia. Lula ficou sem Casa Civil e sem coordenação política.

Lula tem talhe, paciência e apetite para isso?

Lula não tem talhe, paciência ou apetite para a coordenação política, nem acredito que conseguisse, porque não tem vivência parlamentar. Então, caiu-se no pior dos mundos. Nem Lula fez a coordenação política nem resolveu o problema. Outro erro, ainda mais visceral, é o sentido hegemônico do PT, que aparelhou o governo, criando uma sensação de hegemonismo, de ocupação excessiva de poder e de ameaça para os demais partidos.

Que tal Lula na Presidência?

Lula tem qualidades indiscutíveis, mas na Presidência se comporta como o líder sindical. Parece que ele só se sente à vontade quando discursa para sindicalistas ou companheiros do PT e que não acha necessário se aprofundar nos assuntos. Repete muitos chavões típicos do movimento sindical. Dá a impressão de que não gosta muito da maior parte do que compõe o papel do presidente da República: se aprofundar nos assuntos, reuniões difíceis, atenção contínua a todos os aspectos do Estado e do governo. Por fim, falta-lhe vivência parlamentar, o caminho para entender a Presidência. O tal "autismo" de Lula aborda essa demora para se adaptar ao cargo.

Como interpretar os apelos a mobilizações de rua feitos pelo PT?

Só em oportunidades muito raras a mobilização de rua é indício de coisa boa. As manifestações das diretas, em 1984, foram um caso raríssimo. Quando alguém diz "quero o pessoal na rua me apoiando" é sintoma de crise. Isso é da filosofia plebiscitária, a doença infantil da democracia. Militantes não são convocados na expectativa de que vão sentar e tomar sorvete. Eles vêm para brigar, para usar métodos de ameaça. Com isso, o PT apenas aprofunda o problema que quer resolver.