Título: O imenso labirinto boliviano
Autor: Tomás Eloy Martinez
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/07/2005, Internacional, p. A17
Há uma silenciosa trégua agora na Bolívia depois de uma turbulência que forçou a renúncia de Carlos Mesa. Mas a atmosfera continua tão inflamada por ódios raciais, conflitos internos feudais e uma inexorável pobreza que a violência pode explodir a qualquer momento com apenas um riscar de fósforo.
Como ocorre quando nem todos os fatos são conhecidos, a tragédia boliviana tende a ser simplesmente reduzida a um confronto entre modernizadores neoliberais e nacionalistas radicais.
A venda das abundantes reservas de gás natural e petróleo pelos neoliberais assegurou respeitáveis ganhos e a conseqüente promessa de infra-estrutura de saúde e educação que, até agora, parecem ilusórias.
Os nacionalistas querem a volta dessas reservas ao controle do governo.
Outros fatores completam o cenário: os imensos esforços de mobilização dos plantadores da folha de coca e o desejo de segregar o leste da Bolívia.
Essa região, onde estão as riquezas do país, está lutando legalmente por sua autonomia, exigindo Santa Cruz de la Sierra como sua capital.
A população da região oeste acusa Evo Morales, um indígena quíchua, de ser o mentor da maioria dos distúrbios que consumiram a Bolívia durante os últimos cinco anos e criaram um clima de permanente instabilidade.
Mas este não é o caso, ou pelo menos não representa a história toda.
Morales deu aos líderes da elite um terrível susto no fim de 2001, quando pareceu que seu partido, Movimento ao Socialismo (MAS), poderia levá-lo à presidência nas eleições do ano seguinte.
A candidatura de Morales recebeu um formidável impulso de última hora quando o embaixador dos EUA, Manuel Rocha, ameaçou retirar os US$ 94 milhões de ajuda à Bolívia se ele ganhasse.
Morales ficou em segundo lugar e se tornou o líder da oposição.
Sua plataforma política na época incluía idéias radicais como nacionalização de indústrias estratégicas, saúde pública gratuita, educação para todos e redistribuição da terra entre quem trabalha nela.
Mais assustador, contudo, é seu passado.
Para compreender tal passado e a fonte da interpretação simplista da tragédia da nação talvez possa ajudar um esclarecimento sobre por que a Bolívia está nessa situação.
Morales nasceu e foi criado em Oruro, uma província mineira onde mascar folhas de coca é tão normal como mascar tabaco foi para os fazendeiros arruinados retratados em As Vinhas da Ira, de John Steinbeck.
As folhas de coca ajudam as pessoas a tolerar as altitudes dos planaltos desolados e afastar a fome .
Morales viu três de seus irmãos morrer de fome antes de alcançarem a idade de 2 anos.
Somente aos 15 anos ele aprendeu a ler e escrever em espanhol.
Era ainda bem jovem quando Víctor Paz Estenssoro estabeleceu o neoliberalismo como estratégia para conter a hiperinflação.
Paz Estenssoro teve sucesso nisso, mas as privatizações foram inadequadas, corruptas e pioraram a situação de miséria da população.
Cerca de 90% dos camponeses bolivianos - que representam metade do total da população - vivem abaixo da linha de pobreza.
Os cultivos da coca começaram a ser tão essenciais que as exigências e esforços dos americanos para erradicá-los caíram em ouvidos surdos.
Agora, freqüentemente, vêem-se os seguintes cartazes em manifestações públicas: "Gringos: partam e erradiquem seus narizes", aludindo ao fato de que o aumento na plantação de coca é uma resposta direta ao crescimento da demanda nos EUA.
Morales, que teve seu próprio pedaço de terra para plantar coca na floresta de Chapare, liderou o movimento contra a erradicação e assim selou sua imensa popularidade.
Ele é um mulherengo e megalomaníaco, alguém de quem se gosta facilmente.
Forçado a negociar, aprendeu os ardis da política e sabe que o MAS não pode crescer se não contar com o apoio da classe média e, pelo menos, alguns empresários e industriais.
Morales, porém, não está tão à esquerda como seu flerte com Fidel Castro e Hugo Chávez poderia sugerir.
E sua reputação está sendo observada bem mais intensamente fora do que dentro da Bolívia.
Nos últimos distúrbios no país, Morales foi superado por líderes muito mais radicais, como Jaime Solares, da Central Operária Boliviana, que depois do 11 de Setembro declarou: Um, dois, três, muitos Bin Ladens!", ou como o trotskista Felipe Quispe, que dirige os índios aimarás e propôs confinar os brancos em um gueto.
O racismo permeia tudo na Bolívia: política, negócios, até mesmo os esportes.
Mais de dois terços da população são indígenas ou mestiços e sofrem as conseqüências de uma desigualdade brutal que primeiro destruiu os mineiros e agora conseguiu unir os produtores de coca.
A região mais racista é, obviamente, o leste da Bolívia - a mais branca.
Mas sem o apoio desse território seria impossível governar o país.
Em pouco mais de seis meses, haverá eleições para substituir Mesa.
O presidente interino Eduardo Rodríguez as convocará.
Ele é o ex-presidente da Suprema Corte da Bolívia e o último elo na cadeia de sucessores presidenciais.
Rodríguez carece quase por completo de uma margem de manobra, mas sem ele, no final das contas, nenhum processo democrático pode ser alcançado.
Nesse ínterim, ele tem de coibir o caos devastador em El Alto - uma cidade de favelas que cresceu rapidamente sobre La Paz - que é dominado por intransigentes grupos comunitários, movimentos indígenas, subclasses e marginalizados de todas as espécies, todos em um perpétuo estado de agitação.
Morales será, é claro, um dos candidatos, mas é duvidoso que vença.
Como a abundância de partidos políticos dificulta conquistar uma maioria completa, e já que o presidente é então eleito no segundo turno pelo Congresso, os candidatos nas melhores posições - por meio de um xadrez de alianças - são o conservador Jorge Quiroga e o industrial Samuel Doria Medina.
Doria Medina, que é proprietário da maior fábrica de cimento da Bolívia e esteve à margem do recente conflito, se apresenta em sua campanha como um administrador eficaz.
Na atual circunstância, quem sabe se a democracia pode salvar a Bolívia da guerra civil.
Há muitos ódios acesos há muito tempo e, como ocorre às vésperas do colapso, muitos interesses pessoais ou regionais que se situam acima do interesse comum.