Título: Igreja afasta quem denuncia abuso
Autor: Laura Diniz
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/07/2005, Vida&, p. A20

O Instituto de Teologia da Diocese de Santo André (Itsa) mostrou nesta semana como a Igreja Católica lida com críticas e pensamentos divergentes. A professora Regina Soares Jurkewicz foi demitida na quinta-feira, após oito anos de casa, sem ter tido má avaliação profissional.

A demissão veio dois dias depois de a doutoranda em Ciência da Religião pela PUC-SP ter lançado o livro Desvelando a Política do Silêncio: Abuso Sexual de Mulheres por Padres no Brasil.

"É como acontece com o tema abordado no livro: abuso e estupro.

Quando algo toca as questões polêmicas da Igreja, a reação é o fechamento, é se afastar através de uma atitude arbitrária", disse Regina, da coordenação da ONG Católicas pelo Direito de Decidir.

Os padres Edmar Antonio de Jesus, diretor do corpo docente, e Pedro Teixeira de Jesus, reitor do instituto, afirmaram, na notificação de dispensa, que a decisão se deve a um "impasse insolúvel".

"Embora assegurando a sua liberdade de pensamento, (a instituição) não aceita e não concorda com os mesmos", declararam.

Por meio de uma das secretárias da faculdade, o padre Edmar disse ao Estado que não tinha nada a declarar sobre a demissão.

"Essa atitude mostra a falta de diálogo da instituição.

É algo do tipo: `Vá pensar, mas vá pensar longe daqui.

¿ Eu também sou católica.

Onde está a noção de povo de Deus?", questiona.

O livro que provocou a polêmica é um estudo sobre o comportamento da Igreja diante de denúncias de abuso sexual de meninas e mulheres por padres.

A pesquisa aborda 21 casos, noticiados pela imprensa entre 1994 e 2002.

A principal conclusão é de que os crimes são acobertados pela instituição.

Num primeiro momento, as mulheres são culpadas pelos superiores hierárquicos do padre e pela própria comunidade.

"Elas são desqualificadas, tachadas de sedutoras", explica a doutoranda.

Segundo ela, a descrença em relação à versão das vítimas é reforçada pela imagem de homem santo que os sacerdotes ainda têm.

Além disso, os padres geralmente são instruídos e as mulheres abusadas têm pouca educação formal.

"Em resumo, podemos dizer que as mulheres que denunciam sofrem duas violências - a física e, depois, a estigmatização que vem com a denúncia.

" Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida por Regina ao Estado: Qual é a atitude da Igreja diante de uma denúncia?

Imediatamente, eles querem culpar as mulheres com a lógica de que elas são sedutoras, têm um comportamento erótico e provocam os padres.

A CNBB já declarou que as mulheres cruzam as pernas e se sentam no primeiro banco da Igreja.

O mais grave é que em nenhum dos casos analisados houve qualquer indicação, por parte das autoridades eclesiais, de que teria sido feita uma averiguação.

E a comunidade, como reage?

Nos casos estudados, a comunidade incorpora o que a própria Igreja diz.

Se é um lugar pequeno, o padre tem prestígio, é querido, benfeitor.

As pessoas têm resistência a acreditar e, mesmo acreditando, não têm interesse que o caso se torne público porque desmerece a comunidade.

Então, não há nenhum movimento para cobrar da Igreja uma investigação?

Não, o senso comum é de não apurar os fatos e tentar se distanciar disso, evitar que seja notícia.

Ouvimos testemunhos assim: "As meninas devem ter provocado, o padre também é homem.

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" A imagem de que o padre é sagrado ainda é muito forte.

Eles têm o aval da Igreja de que são celibatários, o que é quase como dizer que são imunes ao desejo sexual.

Imaginar que eles têm algo de agressivo é muito mais distante ainda.

Qual é a principal dificuldade da mulher para denunciar?

É exatamente o fato de ela ser desacreditada.

Num dos casos que analisamos em profundidade, a mulher procurou o bispo antes de ir à polícia.

A reação dele foi dizer que não era bem aquilo.

Num segundo momento, disse para ela ficar tranqüila que ele seria transferido.

É a idéia de que irmão tem de apoiar irmão, acaba sendo de acobertar.

Quando o padre se diz arrependido, o caso acaba sendo tratado como pecado e não crime.

E estamos falando de estupro ou abuso sexual, não é relação consentida.

Não conheço padre expulso da Igreja por isso.

Vale a pena denunciar?

Vale porque é o único caminho.

Mas é muito duro.

Muitas perderam trabalho, algumas tiveram de mudar da cidade porque foram estigmatizadas.

Outras recebiam xingamentos na escola.

As pessoas tinham raiva delas.

O que havia de comum nos 21 casos analisados?

A desigualdade entre as pessoas que fazem a denúncia e os denunciados.

A diferença de lugar de poder é muito grande.

Do ponto de vista financeiro, de domínio da palavra, de educação.

Os padres são graduados, muitos são professores universitários.

A maioria das vítimas é pobre e pouco instruída.

Em geral, a denúncia ocorre porque alguém perde a cabeça.

Num dos casos, quem denunciou foi a mãe de duas meninas, que se embriagava.

As meninas brigavam pelas coisas que o padre dava.

Você achou bastante bibliografia sobre esse tema?

Não.

Aqui no Brasil só tem uma pesquisa sobre o assunto, do padre Gino Nasini.

Na Espanha, há um pesquisador que estuda a pedofilia na Igreja, o Pepe Rodríguez.

Ele fez um decálogo mostrando os passos da Igreja para acobertar os casos (veja quadro abaixo).

Verificamos que aqui isso também acontece.

Cito, ainda, um estudioso dos Estados Unidos que aborda o envolvimento sexual dos padres.

Você cita no livro que alguns países passaram por uma fase de ruptura em relação ao modo como a Igreja reage às denúncias.

Que ruptura é essa?

Nos Estados Unidos, a fase de ruptura do silêncio já aconteceu em 2002, puxada pelas denúncias de pedofilia.

A Igreja foi tomando providências para evitar que novos casos aconteçam.

Nos centros de acolhimento, os padres vão conversar com psicólogos.

Eles também criaram comissões em que participam leigos, para ouvir e encaminhar as queixas.

E o padre não pode mais celebrar missa enquanto não termina a apuração.

Aqui, não há uma pessoa dentro das comunidades católicas para receber queixas.

Existem padres abusadores aqui e lá igualmente.

Só que lá houve maior visibilidade.

E em relação ao celibato, deve haver alguma mudança?

A Igreja afirma o celibato, mas uma pesquisa recente dos Estados Unidos mostrou que 50% dos padres não são celibatários.

Quando a gente fala em romper esse sistema secreto, de silêncio, quer que a Igreja pare de afirmar que os casos são irrisórios.

Outra coisa: vivemos num estado laico.

A Igreja não tem um tribunal próprio para esse julgamento.

As investigações não podem parar lá dentro, têm de chegar à Justiça comum.

Na sua opinião, qual será a posição da Igreja em relação aos abusos com o novo papa?

Ai, ai, ai.

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O papa Bento XVI tem um histórico de quem não é muito sensível aos problemas levantados pelas mulheres e homossexuais dentro da Igreja.

É conservador, perseguiu o pessoal da Teologia da Libertação.

A partir daí, não dá para ser muito otimista.

É meio difícil acreditar que isso mude.

Mas esperamos que ele escute as pessoas que estão fazendo as denúncias da mesma forma que escuta o padre.

As vítimas são tão parte da Igreja quanto são os padres, são fiéis, não podem ser tratadas sem credibilidade.

Há um caminho para pressionar a Igreja a não acobertar?

Primeiro, as vítimas têm de ter coragem de falar a verdade.

O lado mais fraco muitas vezes está com a verdade.

Depois, há experiências de outros países, tentativas de criar normas diocesanas de proteção às denunciantes.

A sociedade pode estar mais sensível e ajudar para que isso aconteça.

Se a Igreja se sentir pressionada, vai se esforçar mais em achar um caminho.

Meu trabalho não quer trazer casos específicos, fazer sensacionalismo, mas tentar fazer a Igreja prestar contas e criar mecanismos internos de como lidar com esse problema.