Título: O casamento homossexual
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/07/2005, Vida&, p. A23

Depois da Holanda, da Bélgica e do Canadá, a Espanha se tornou o quarto país no mundo a ter legalizado o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com todos os deveres e direitos incluídos, entre eles o de poder adotar filhos. É um passo à frente extraordinário no campo dos direitos humanos e da cultura da liberdade que mostra, de maneira espetacular, o quanto e com que rapidez se modernizou a sociedade em que, recordemos, faz alguns séculos, os homossexuais eram queimados em praça pública e onde, ainda nos tempos da ditadura de Franco, o homossexualismo era considerado um delito e como tal reprimido.

Essa medida é um ato de justiça que reconhece o direito dos cidadãos de escolher sua opção sexual no exercício de sua soberania sem serem discriminados nem diminuídos por isso e que reconhece aos casais homossexuais o mesmo direito de se unir e formar uma família e ter descendência que as leis reconhecem para casais heterossexuais.

Embora essa medida seja um desagravo para uma minoria sexual que, ao longo da história, foi objeto de perseguições e marginalizações de toda ordem, obrigando os que a constituíam a viver quase na clandestinidade e no temor permanente do descrédito e do escândalo, ela não bastaria para cancelar de uma vez por todas os preconceitos e falácias que demonizam o homossexual, mas, sem a menor dúvida, constitui um grande avanço para a lenta, irreversível aceitação pelo conjunto da sociedade - para a maioria, ao menos - da homossexualidade como uma manifestação perfeitamente natural e legítima da diversidade humana.

A lei, como era lógico que ocorresse, teve adversários encarniçados e gerou mobilizações diversas, entre elas, em Madri, uma manifestação de massa convocada por várias associações católicas, respaldada pela hierarquia da Igreja, à qual assistiram 18 bispos e que teve apoio do Partido Popular, o principal partido de oposição ao governo de Rodríguez Zapatero.

Mas todas as pesquisas de opinião são inequívocas: quase dois terços dos espanhóis aprovam o casamento gay e, embora essa aprovação diminua um pouco na adoção de filhos por casais homossexuais, esse aspecto da lei também é convalidado por uma maioria.

Bom indício de que a democracia deitou raízes na Espanha e de que, por mais injuriada que seja da boca para fora, a cultura liberal vai impregnando pouco a pouco a sociedade espanhola.

Os argumentos contra o casamento gay não resistem à menor análise racional e se desfazem como teias de aranha quando examinados de perto.

Um dos mais utilizados foi de que com essa medida se dá um golpe de morte na família.

Por quê? De que maneira? Não poderão continuar se casando e tendo filhos os casais heterossexuais que queiram fazê-lo? Alguém, com base nessa nova lei, vai forçar alguém a não se casar ou a se casar de maneira distinta da tradicional? Pelo contrário, a lei, ao permitir que casais gays contraiam matrimônio e adotem filhos, vai injetar nova vitalidade na família, uma instituição que - alguém ainda não percebeu? - sofre já faz um bom tempo de profunda crise na sociedade ocidental, ao extremo que, contabilizando o número de divórcios que cresce a cada ano e a multiplicação de casais de fato que se recusam firmemente a passar pelo altar ou pelo registro civil, há quem lhe augure uma obsolescência irremediável.

O paradoxo é que, provavelmente, só entre os homossexuais, que, como todas as minorias perseguidas desejam ardentemente sair do gueto onde a sociedade os confinou, a família desperta essa ilusão e esse respeito parece ter perdido em um número muito grande de heterossexuais, sobretudo, entre os jovens.

Por isso, não há ironia alguma em dizer - acredito piamente nisso - que é muito possível que, dentro de 20 ou 30 anos, as estatísticas descubram as famílias mais estáveis entre os casamentos gays.

Um preconceito idêntico sustenta que os filhos adotados por casais homossexuais sofrerão e terão uma formação deficiente e anômala, já que para uma criança ser "normal" ela precisa de um pai e uma mãe e não de dois pais ou duas mães.

A essa afirmação dogmática e sem a menor sustentação psicológica, respondeu Edurne Uriarte de maneira definitiva: uma criança precisa é de amor, não de abstrações.

Também padecem de uma cegueira contumaz os que não perceberam que surgem todos os dias, entre casais heterossexuais, casos atrozes de violências exercidas contra os filhos e, entre elas, um sem número de abusos sexuais.

Que os pais sejam hetero ou homossexuais não pressupõe nada por si só; cada casal é único e pode ser admirável ou tirânico, amoroso ou cruel, no que se refere à educação de seus filhos.

E também nesse campo cabe supor que entre os que lutaram tanto para poder adotar filhos, agora que o conseguiram, assumirão esse direito com responsabilidade.

Na verdade, por trás de todos esses argumentos não há razões e sim preconceitos inveterados, uma repugnância instintiva para os que praticam o amor de uma maneira que séculos de ignorância, estupidez, obscurantismo dogmático e fantasmas retorcidos do inconsciente satanizaram, chamando-o de "anormal".

Na verdade, já faz tempo que a ciência, a biologia, a antropologia, a psicologia, a história, sobretudo, colocaram as coisas no seu lugar e estabeleceram que falar de "anormalidade" no campo da vocação sexual dos seres humanos é arriscado e alienante.

Salvo casos extremos que envolvem criminalidade e que de maneira alguma podem ser identificados com uma opção sexual específica, no universo do sexo há variedades, uma constelação de vocações e predisposições das quais não dá conta, de maneira alguma, a demarcação entre homossexualidade e heterossexualidade, pois se refrata e se múltipla no seio de cada uma dessas grandes opções, como ocorre em tantos outros campos da personalidade individual: as aptidões, as preferências, os gostos, as incompatibilidades, as faculdades físicas e intelectuais, etc.

O governo que aprovou essa lei na Espanha é socialista e há que se reconhecer todo seu mérito.

Mas, para evitar confusões, convém recordar que se trata de uma medida de profunda índole liberal e democrática e nada socialista.

Em matéria sexual, o socialismo tem sido, ao longo de sua história, tão puritano e preconceituoso quanto a Igreja Católica.

Se dependesse dele, a hipocrisia e o recato teriam ditado a norma aceitável em matéria de costumes sexuais e esta teria sido imposta à sociedade pela força.

Por isso, nas sociedades comunistas, a discriminação e a perseguição ao homossexual foi, em certos períodos, tão feroz como na Alemanha nazista, onde nas câmaras da morte dos campos de concentração pereceram muitos milhares de homossexuais.

Também no Gulag soviético sofreu e morreu um grande número de seres humanos cujo único delito era praticar uma opção sexual que a "ciência comunista" do temível Pavlov considerava uma perversão "urbano-burguesa".

Carlos Franqui conta em algum lugar que, quando ele, como diretor do diário Revolución, assistia aos conselhos de ministros de Cuba, no início dos anos 1960, Fidel e seus homens de confiança perguntaram aos "países irmãos" que política aconselhavam para enfrentar "o problema homossexual".

A resposta da China Popular de Mao Tsé-tung foi a mais clara: "Já não temos esse problema.

Fuzilamos todos".

Sem chegar a esses extremos, Fidel criou as Umap (Unidades Militares de Ajuda à Produção), isto é, campos de concentração para onde eram conduzidos homossexuais de ambos os sexos junto com criminosos comuns e dissidentes políticos.

Foi nas sociedades democráticas, impregnadas de cultura liberal como os países escandinavos e os Estados Unidos, que foram ganhas as primeiras batalhas contra a discriminação dos gays e onde, pouco a pouco, eles foram sendo reconhecidos tal como são: seres humanos normais cuja opção sexual deve ser aceita e reconhecida como perfeitamente legítima pelo conjunto da sociedade.

É difícil, para mim, entender as razões pelas quais o Partido Popular apoiou a manifestação contra o casamento gay.

Embora seja verdade que seu dirigente máximo não a assistiu, e que tampouco estiveram presentes seus principais líderes, o fato de o partido a ter apoiado só pode ter contribuído para confundir e lastimar não só aos homossexuais que existem em suas fileiras, mas, sobretudo, seu setor liberal, e dar argumentos aos que o apresentam como uma formação política ultraconservadora.

O oportunismo político traz benefícios muito passageiros e superficiais.

Há muitas razões para criticar o governo de Rodríguez Zapatero.

Sua política internacional desastrosa, por exemplo, que suprimiu a Espanha do cenário mundial, onde chegou a ter influência e a figurar entre os países de vanguarda.

Suas vendas de armas ao governo demagógico do comandante Chávez na Venezuela, que anima e subvenciona grupos subversivos.

Sua aproximação, que beira à cafetinagem, da satrapia de Fidel Castro, a qual tentou salvar da condenação que mereceu da Comissão de Direitos Humanos da ONU.

Ou suas concessões sistemáticas aos nacionalismos, que rompem uma tradição do socialismo democrático de defesa da unidade da Espanha da qual o governo de Felipe González nunca se afastou.

Mas não faz sentido atacar um governo por tudo que faz e, muito menos, por ter feito avançar, com essa lei, a democratização e a modernização da sociedade espanhola.