Título: RNA sai da sombra do primo ilustre
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/07/2005, Vida&, p. A24

O DNA geralmente domina as manchetes no papel de "arquivo da informação genética". Mas muitas das operações biológicas complexas que acontecem dentro das células são feitas pelo primo próximo, o RNA.

O ácido ribonucleico - ou RNA - foi sempre tão preterido que suas principais funções foram detalhadas somente de uns anos para cá.

Uma delas é a "sintonia fina" da atividade genética, ou seja, como o RNA trabalha em momentos cruciais da diferenciação celular, da produção de insulina e do desenvolvimento do câncer, por exemplo.

Para exercer esta função, a molécula assume outra forma, conhecida como microRNA.

MÁQUINA AZEITADA De forma geral, os blocos que constroem o corpo e o colocam para funcionar são as proteínas, moléculas fabricadas dentro das células por umas organelas mais ou menos esféricas chamadas ribossomos.

O tipo de proteína a ser produzido é determinado pelos genes, mas eles apenas dão a ordem.

O modelo que será usado é passado por meio do RNA mensageiro (mRNA), uma cópia da seqüência de bases nitrogenadas que vai "grudar" nos ribossomos (veja quadro ao lado).

A quantidade precisa de cada proteína é essencial para que o corpo funcione perfeitamente - a síndrome de Down, por exemplo, é causada por um cromossomo extra e a produção excessiva de proteínas conseqüentes.

Para completar o quadro produtivo, era preciso descobrir o que faz a tal "sintonia fina", estabelecendo quanto produzir e quando parar.

Nos últimos anos, cientistas perceberam que existe um outro personagem que completa a história: o microRNA.

Esse fragmento é também uma cópia do DNA, mas não se traduz em proteína.

Ele tem uma função um pouco mais regulatória, ao escalonar a produção nas células ligando-se a determinados lugares do RNA mensageiro e interrompendo o processo quando necessário.

À primeira vista, pode parecer inútil uma célula gerar um RNA mensageiro - para produzir uma proteína - e em seguida mandar o microRNA para segurar a fabricação.

Contudo, esta é uma maneira sofisticada de regular os níveis de produção, em particular de proteínas que são necessárias num estágio da vida, mas precisam ficar ausentes em outros momentos.

Uma função especialmente importante do microRNA pode ser a de sufocar a produção de proteínas que mantêm células num estado indiferenciado (como as células-tronco), direcionando o amadurecimento de cada uma delas na hora certa.

INTERRUPTORES Num artigo publicado na revista Nature no mês passado, Todd Golub, do Instituto Broad, nos Estados Unidos, relata que muitos tecidos cancerosos têm menos microRNA do que células normais.

A descoberta sugere que as células tumorais retrocedem no processo de maturação normal e recuperam o potencial de crescimento observado nas células-tronco.

Golub descreve como uma quantidade muito pequena destes componentes poderia ser a causa de surgimento de tumores ou contribuiria para sua manutenção, embora não seja claro como a produção normal é suprimida.

Até hoje, pouco mais de 300 microRNAs foram catalogados.

David Bartel, especialista em RNA do Instituto Whitehead, calcula que existam 400 a 800 deles no genoma humano.

Só que um microRNA pode controlar vários tipos diferentes de RNA mensageiro, colocando um número muito maior de genes sob influência deste sistema.

Para Bartel, pelo menos um terço dos genes em homens e em outros mamíferos é controlado por microRNAs.

Inclui-se os genes dos fatores de transcrição, os "interruptores-mestres" que acionam outros genes e formam todo o sistema regulador central da célula.

Com os fatores de transcrição, os microRNAs parecem ajudar a formar tipos muito especializados de células humanas a partir de um único tipo genérico.

Desvendar seu papel pode clarear os mistérios que diferenciam o homem das demais espécies.