Título: Suzane livre ou injustiça rápida?
Autor: Ivan Finotti
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/07/2005, Aliás, p. J4

Um dos mais respeitados criminalistas do país, Miguel Reale Júnior discorda do senso comum que esbraveja contra a libertação de Suzane Richthofen. Para ele, a população deveria reconhecer a correção jurídica do ato, e não se revoltar. "É uma garantia de que um dia os cidadãos não vão ser objeto de injustiça", diz o advogado, argumentando que o fato não significa a impunidade de Suzane, mas sim o cumprimento do rito da Justiça, uma vez que sua prisão preventiva estava irregular. "O respeito às regras do processo penal é fundamental para o Estado democrático." Ministro da Justiça por três meses em 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso, e há 18 anos professor titular de Direito da Universidade de São Paulo, Miguel Reale Júnior prefere não entrar em detalhes processuais do caso Richthofen ou de qualquer outro com o qual não esteja envolvido profissionalmente. Mas responde, do ponto de vista jurídico, a questão que não saiu da cabeça do brasileiro nesta semana: como pode ser Justiça soltar alguém que confessou ter participado do assassinato brutal dos pais?

A opinião pública parece discordar da soltura de Suzane Richthofen. O que o senhor diz?

A opinião pública está errada. Há um princípio consagrado na Constituição do devido processo legal. O que isso quer dizer?

Que para a aplicação do Direito existem determinadas regras. Essas regras precisam ser observadas. A primeira delas é que não existe pena sem processo. A segunda é que não basta que haja o processo. É necessário que ele seja regular e siga efetivamente os trâmites previstos.

É por via do processo penal sem exigência de que o estabelecido será seguido que essas regras foram desrespeitadas na ditadura.

Porque eu não preciso de um processo legal rigoroso para punir o dissidente, o antagonista, o inimigo. Basta eu ter um processo penal cujas regras eu possa desrespeitar, desviar.

É justo que Suzane esteja solta, mesmo tendo confessado sua participação na morte dos pais?

O fundamento das regras do processo penal é essencial para o Estado democrático. É essencial para qualquer cidadão. E se num determinado caso houve desrespeito às regras processuais - e o tribunal reconhece que houve esse desrespeito - e isso justifica a liberdade de alguém que está preso preventivamente, ou seja, sem ainda uma sentença condenatória, os cidadãos não deveriam se revoltar contra, mas sim reconhecer a importância disso. Porque a garantia é para eles também, de que um dia eles não vão ser objeto de uma injustiça. É o caso de Suzane, esse desrespeito?

É. Desrespeito porque se excedeu o prazo. A população não pode confundir essa liberdade com absolvição.

O que o senhor diz é que a população deveria aplaudir a soltura?

Isso não significa impunidade porque não é nenhum juízo de mérito com relação à sua culpa. Trata-se apenas e tão-somente do reconhecimento de que a prisão preventiva estava se estendendo além do tempo justificável e também havia sido decretada sem os requisitos exigíveis. Na generalidade dos casos, os réus esperam o julgamento em liberdade. Ela não estava presa porque se lhe atribui previamente uma culpa. Ela estava presa por circunstâncias de caráter exclusivamente processual. Não é a gravidade do crime por si só que justifica a prisão preventiva, que é uma prisão sem juízo de mérito e sem processo.

O promotor do caso Richthofen, Roberto Tardelli, declarou o seguinte ao saber da soltura: "Fico pensando no camarada cujo filho está preso por furto, por porte de arma ou por estelionato. Sabendo que quem planejou a morte dos pais está solto e seu filho preso, o que ele deve estar sentindo agora?" Como explicar esse argumento a esse pai?

Eu pergunto a esse promotor se ele prefere, em sã consciência e com sua formação jurídica, que uma pessoa fique presa mesmo que a fundamentação da prisão não tenha sido correta. Se ele prefere que uma pessoa fique presa mesmo que os prazos processuais tenham estourado e ela não tenha sido julgada no prazo determinado. Se isso não ofende a Justiça.

Pediria ao senhor que reformulasse sua fala para um cidadão comum, que não entende de leis.

Para uma pessoa da população que não tem a formação jurídica do promotor é mais difícil. Até porque ela está sendo mobilizada emocionalmente pelos meios de comunicação ou pelo próprio promotor, que está dizendo "oh, que absurdo". Mas como é que se vai passar para uma pessoa que está distante, envolta em suas dificuldades de vida, sem maiores conhecimentos de Direito e princípios que regem a vida jurídica, que é importante que os princípios sejam respeitados?

O senhor é o professor.

Eu não tenho a solução para isso. A solução está na responsabilidade daqueles que vão falar, do Ministério Público, dos comunicadores, dos juízes, em reconher que houve erros. A população precisa ser esclarecida através da correta informação. Sei a dramatização que se faz da violência. Não está correto. É uma utilização da sensibilidade e da pouca informação do público destinatário para agradar seu desejo de justiça já, rápida, de qualquer forma. Isso é um desserviço.

E a máxima de que, no Brasil, só vai para a cadeia quem é pobre?

Não é verdade. É que é muito mais fácil você ter a resolução do processo de um caso de roubo, que é um fato isolado, único. "Houve ou não houve? O indivíduo viu ou não viu?" É aquilo, ponto, acabou-se.

A emoção, de qualquer forma, faz parte da opinião pública. Na quarta, por exemplo, Hebe Camargo estava exaltada na televisão falando sobre o caso e batendo na Justiça.

O que é pior é a mídia, ou uma pessoa como Hebe Camargo, que pouco entende de Direito, mas tem uma grande audiência, resolver fazer juízos críticos. Ela deve medir mais a sua fala porque tem de saber a importância que tem como uma comunicadora de sucesso.

É fácil jogar para uma platéia emocional e tocar no ponto que lhe agrada. Mesmo ao preço de denegrir as instituições. É uma responsabilidade que os meios de comunicação e pessoas da audiência de Hebe Camargo têm de ter.

Porque ela insufla a população contra o Judiciário injustamente. Ela não tem capacidade técnica para fazer essa avaliação.

Mas o senhor concorda que casos como o de Suzane ou o de Gil Rugai, que envolvem a família, são muito chocantes.

Um dos problemas mais graves que temos hoje no país é a violência doméstica. Não são apenas esses dois casos, mas a violência doméstica é algo que tem caracterizado a sociedade contemporânea, especialmente nas grandes cidades. Então, estamos vivendo a perda da importância da família.

O senhor acredita que tenha havido uma perda? Não acha que sempre tenha sido assim?

Não. É uma perda própria do processo de globalização, de fragilização das figuras de autoridade. De outro lado, a isso se soma uma desorganização social, da família, e uma grande dificuldade dos pais de impor leis. Essa desorganização social vitima sobretudo a população mais pobre, das favelas e da periferia de São Paulo.

Essa população vive uma desorganização social decorrente das dificuldades materiais, decorrente de uma imensa campanha publicitária de consumismo que atinge tanto os ricos quanto os pobres.

A propaganda do tênis, da jaqueta, do boné ou do relógio atinge igualmente a população rica e a pobre. Todos são atingidos. Então, se você não tem mais a força da família, a força da escola, a igreja, o sindicato, o clube, quem é que forma os padrões de comportamento?

A mídia?

A mídia forma os padrões. E há uma criação artificial de desejos. Alguns podem. Outros, não. E, ao mesmo tempo, há um imenso receio dos pais em dizer não. Há um império da criança. A massa de desejos e aspirações que são criados em volume considerável leva a um processo obrigatório de frustração. É até um processo histérico, porque a obtenção do desejo não traz satisfação. Imediatamente vem um novo desejo.

E como isso acaba?

Isso tudo leva a uma desorganização social, que leva a outra dentro do núcleo familiar, que faz com que possa haver violência dentro de casa, seja para obter mais coisas, seja para dizer não à opressão paterna - que na verdade é apenas a educação paterna -, seja porque se passa a ver aquele com quem se convive como um inimigo. Como alguém que atrapalha. Esses dois casos a que estamos nos referindo ocorreram na classe média alta. A violência também está lá, naquilo a que se aspira, que é ter um nível de vida como esse. O problema não é só de Justiça, de lei. O problema é de ordem social e também espiritual.

Como o senhor disse, a opinião pública quer que se pague por um crime imediatamente, uma vez que o autor tenha confessado. Há casos, como o do jornalista Pimenta Neves, que confessou ter matado Sandra Gomide há cinco anos, mas está solto, aguardando julgamento.

Não é de hoje que a Justiça do país é lenta. E a confissão não acelera. A confissão não é uma prova. Muitas vezes alguém pode confessar e ser absolvido, porque a confissão precisa ser corroborada por outras provas. O processo tem as suas regras, mesmo que o réu seja confesso. O processo é demorado não apenas por protelações da defesa, mas porque há provas que demandam um maior estudo.

Porque também há um excesso de processos entregues a um juiz. Em suma, a demora é prejudicial ao reconhecimento da Justiça. É importante uma Justiça rápida, mas eu tenho muito medo de que, em nome disso, se atropelem os procedimentos. Porque nada pior que a injustiça rápida. O Direito é, antes de tudo, prudência.