Título: A sistemática escalada da violência
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/07/2005, Aliás, p. J5

Se a Colômbia, que enfrenta a guerrilha há meio século e é um grande exportador de cocaína, pode controlar a violência, o Brasil também pode. "Estamos moralmente obrigados a fazer isso", resume o sociólogo e cientista político Gláucio Ary Dillon Soares, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), que há mais de 30 anos estuda o crescimento da violência no País. Animado com os resultados obtidos em Estados como São Paulo, em cidades como Diadema e em bairros como Jardim Ângela, o pesquisador acredita que a adoção de medidas inteligentes, aliadas à vontade política, será capaz de reverter a situação. "Registramos mais de 50 mil homicídios por ano, com uma taxa nada invejável de 30 mortes por 100 mil habitantes", afirma Soares, com base em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, os mais confiáveis para calcular a média nacional de assassinatos. Há 23 anos o crescimento do número de homicídios gira em torno de 0,9 ao ano. De 1979 até 2002, período correspondente ao levantamento, 2 milhões de brasileiros tiveram morte violenta. Os homicídios representam dois terços do total - na maioria dos casos, praticados com armas de fogo. As campanhas de desarmamento são eficazes e vêm dando bons resultados, mas o pesquisador do Iuperj adverte que outras medidas têm de ser tomadas, a começar pela educação e pelo alerta para o perigo do uso de drogas. Formado em Direito pela Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, e doutor em Sociologia pela Washington University, em Saint Louis, nos Estados Unidos, onde foi professor da Universidade da Flórida, o pesquisador Gláucio Soares, 70 anos, lançará em breve o livro Não Matarás, título de inspiração bíblica sobre desenvolvimento, desigualdade e homicídios no Brasil. Uma de suas teses: no Brasil não há uma relação histórica entre distribuição de renda e taxa de homicídios. Cinco anos atrás, o senhor alertava que os homicídios chegavam a 40 mil no Brasil e estavam crescendo a uma taxa assustadora. Como está a situação hoje? Já devemos ter passado de 50 mil. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes está crescendo a 0,9 por ano. Isso quer dizer o quê?

Quando temos uma taxa de 20 num ano, é 20,9 no ano seguinte, 21,8 depois, e assim por diante. É linear. Se desenharmos um gráfico, ele revelará que a taxa de homicídios tem crescido com muito pouca variação. Não se trata de uma onda de homicídios, de uma epidemia de homicídios, mas de uma evolução gradual. Esse aumento é a média nacional. Num momento pode ser que tenhamos um crescimento no Rio de Janeiro e um decréscimo em São Paulo, ou, como ocorre nesses últimos anos, que haja um decréscimo em São Paulo e um crescimento em Minas. Há 23 anos que taxa cresce 0,9 por ano. Essa taxa corresponde a quantos homicídios por ano?

São 30 homicídios por 100 mil habitantes, cada ano. Não é uma taxa invejável. Taxa invejável seria talvez 10 por 100 mil habitantes. Evidentemente, há países com taxas muito mais baixas, próximas e até inferiores a 1 por 100 mil habitantes. Inglaterra e Suécia, por exemplo. Alguns países da Europa Ocidental tinham já desde o século 19 uma taxa próxima de 1 por 100 mil habitantes. A partir de 1970, o mundo teve um crescimento na taxa de homicídios. Por que isso ocorreu?

Porque houve uma entrada maciça dos jovens no mercado de trabalho, com achatamento salarial. Também foi o início do crescimento acelerado do consumo de drogas. Aumentaram os casos de dissolução da família nuclear tradicional. Há mais crianças que crescem só com o pai ou com a mãe. Dados abundantes de vários países mostram que filhos e filhas de casais incompletos têm uma taxa de reprovação na escola mais alta, taxa de vitimização por homicídio mais alta, taxa de criminalidade e de delinqüência juvenil mais alta. Há uma série de disfunções. Durante muito tempo se achou que a figura paterna era secundária, quase irrelevante. Hoje nós sabemos que ela é relevante. Foi um fenômeno mundial?

Houve crescimento na Europa e nos Estados Unidos, mas nada parecido com o que temos visto no Brasil. Em alguns países latino-americanos cresceu ainda mais rápido - a Colômbia é o caso clássico. Mas, talvez por isso, a Colômbia se conscientizou cedo de que tinha um problema muito sério, que ia além da guerrilha e além da droga. Algumas medidas foram tomadas. Em Bogotá, a taxa de homicídios caiu de mais de 80 ao redor de 1990 para 23 em 2003. No caso do Brasil, o senhor se refere aos Estados ou às capitais, como São Paulo e Rio, por exemplo?

Estou falando das capitais. No Brasil, a segurança pública está mais afeita ao governo do Estado do que à administração municipal, daí a preponderância das análises com base em Estados. Os municípios não podem ter uma polícia militar. Diadema, por exemplo, fez muita coisa e reduziu substancialmente a taxa de homicídios. Há lá uma briga. A prefeitura de Diadema e o governo do Estado de São Paulo reivindicam o mérito pela queda de homicídios, mas os dois têm a ver com isso. Diadema e municípios que adotaram a lei seca (restrição no consumo de álcool) tiveram baixa bem maior do que a média do Estado, e particularmente do que a região metropolitana. Até 50 anos atrás, São Paulo e Rio eram cidades tranqüilas, não havia essa onda de assaltos e homicídios. A taxa dessas cidades era uma fração da que é hoje. Mas não era um paraíso, o paraíso estava em outros continentes. As taxas baixas são características de lugares como Nova Zelândia, Austrália, Japão, Inglaterra e de países do norte da Europa. Com raras exceções, elas nunca foram características dos países latino-americanos. Chile e Costa Rica têm taxas baixas. Argentina e México têm taxas mais baixas que a nossa. No entanto, são economias que não estão melhores que a do Brasil. A taxa de homicídios está ligada ao nível de vida da população?

Alguns países têm baixas taxas de homicídios desde o século 19 ou antes. A renda per capita era muito inferior à nossa de hoje e, não obstante, a taxa de homicídios era muito mais baixa. Não há fator único que explique homicídios. Para começar, não há homicídio, há vários tipos de homicídio. Homicídio de homem que mata mulher em fim de relação é um tipo e tem determinantes próprios. Homicídio de traficante que mata outro traficante por ponto-de-venda em favela tem outros determinantes. Acontece em lugar diferente, hora diferente, com arma diferente. Se eu quiser impedir que mulheres sejam mortas pelo companheiro, tenho de ter acesso aos sinais de risco. Sim, o consorte violento deixa sinais. Normalmente, o homicídio é precedido de agressões. Qual é a porcentagem do uso de armas de fogo nos homicídios?

Em 1979 as armas de fogo representavam entre um quarto e uma terceira parte do total de homicídios. Hoje representam perto de dois terços para mais. Em áreas de favela podem representar mais de 90%. As pessoas têm mais acesso a armas?

Têm acesso e precisam de soluções rápidas. Essa tecnologia é de fácil acesso, pode-se comprar barato uma arma de fogo. Ela é mais eficiente também, menos gente escapa. Evidentemente, a divulgação da arma de fogo, a generalidade do seu uso, significa exatamente que ela está penetrando fora das capitais. A porcentagem do total de homicídios com arma de fogo não cresce só nas cidades. Está se espalhando. Nós temos hoje taxas muito elevadas de homicídios em cidades de tamanho médio, de 500 mil a 1 milhão de habitantes. Como está o Brasil em comparação com outros países?

É difícil responder. Há muitos países sobre os quais nós não temos dados confiáveis e alguns deles são muito violentos. As cidades da África do Sul são mais violentas do que Rio e São Paulo. E Caracas, que não era, ficou mais violenta do que Rio e São Paulo. Mas Rio e São Paulo são muito mais violentas hoje do que Bogotá, Lima, Cidade do México, Santiago, Montevidéu, Buenos Aires e São José de Costa Rica, por exemplo. A América Latina, ao menos nos países sobre os quais há dados, é a região mais violenta do mundo. E desigual, porque a taxa pode variar de 4 ou 5 num país para 60 ou 70 em outro. A campanha de desarmamento melhorará a situação no Brasil?

Começa a dar resultados. Estimativas de São Paulo sugerem que, devido ao desarmamento, há declínio de 5% a 15% da taxa de homicídios. As mortes não acabarão, mas podem ser controladas, podem diminuir. Temos êxitos com campanhas de controle de consumo de álcool, a lei seca, que deu resultados também em Bogotá. Há outras medidas, além do controle de álcool?

Quando se fala em tolerância zero, há mais de 40. Tolerância zero é como o nome de um livro com um montão de capítulos bem diferentes, que às vezes não têm muito a ver um com o outro: um capítulo é sobre controle de armas, outro fala do desarmamento na escola, o terceiro é para pedir a jovens que acompanhem idosos em áreas perigosas, outro estimula a prática esportiva. . . Diadema adotou um pacote de medidas inteligentes e contratou instituições externas para avaliar os resultados. Deu certo. Quando muda a administração, essas medidas têm continuidade?

Em Bogotá, na Colômbia, o decréscimo continua, independentemente das administrações. Já em Cali a taxa de homicídios voltou a crescer por falta de continuidade. No Brasil, a taxa de mortes no trânsito foi reduzida à metade no Distrito Federal, durante o governo de Cristovam Buarque. Com a entrada do novo governador, que acabou com o programa Paz no Trânsito, a taxa não só parou de decrescer como voltou a subir. Significa que morreu mais gente do que era esperado. Seria possível reverter a situação de violência no Rio e em São Paulo?

Se foi revertida em Bogotá, com guerrilha, com tráfico rodando adoidado, claro que sim. Tem jeito. A violência está ligada ao tráfico de drogas?

O tráfico, e as drogas em geral, tem uma influência desproporcional no total de mortes, mas não há só mortes pelo tráfico. Nós temos juízes matando, temos maridos matando, temos desesperados no trânsito. De 1979 a 2002, o período em que analisamos, houve bem mais gente morta no trânsito do que por homicídios. Isso mudou, pois hoje os homicídios já são a principal causa de mortes por fatores externos no Brasil. A nova lei de trânsito baixou o número de mortes em 4 mil a 5 mil, e poderia ter baixado mais, se as medidas continuassem a ser implementadas. Há relação direta entre homicídios e distribuição de renda no Brasil?

Historicamente não há nenhuma relação no Brasil. A distribuição de renda não tem mudado e os homicídios têm crescido. Nas cidades e nas regiões metropolitanas são as áreas com mais baixa renda as que apresentam taxas mais altas de homicídio. Mas entre os Estados isso não é assim. Não são os mais pobres que exibem as taxas mais altas de homicídios, não são as cidades mais pobres. Mas as periferias, as áreas mais pobres, estão nas capitais. Onde se concentram os homicídios?

A taxa do Leblon é de 10 por 100 mil habitantes. É uma taxa baixa em comparação com a da zona oeste do Rio, mas seria considerada intolerável na Suécia. Na história da Europa Ocidental, não há exemplos que cheguem perto da situação de Diadema ou do Jardim Ângela, em São Paulo, de cinco ou seis anos atrás. A situação de Diadema e do Jardim Ângela melhorou?

Melhorou e, no caso de Diadema, melhorou muito. As ações policiais passaram a ser inteligentes. Nós tivemos policiais corajosos, que descentralizaram as ações, e isso facilitou a interação com a população. Esse é o objetivo da Polícia Comunitária. As quadrilhas eram desfeitas, à medida que estavam sendo formadas, antes que começassem a matar. A Polícia Civil de São Paulo aumentou muito a taxa de solução de homicídios. Um dos nossos problemas é a impunidade. De um lado, morrem muitas pessoas, mas, de outro, pouquíssimas são condenadas, pouquíssimas são identificadas, menos são condenadas e menos ainda cumprem pena. O Rio tem caminhado nessa mesma direção?

Não, o Rio é uma catástrofe. A polícia tem gente muito competente, particularmente gente jovem, gente que quer melhorar, mas também tem gente muito corrupta, muito violenta, bandidos de farda. No Rio, como se o nosso Estado fosse a Suécia, desprezamos a participação das Forças Armadas e da Polícia Federal. Não que a participação das Forças Armadas possa ser mais do que um epifenômeno, uma coisa eventual, de alguns dias, porque não foram treinadas para isso. Argumenta-se que não é essa a missão das Forças Armadas. Pode passar a ser, se o País assim o decidir. Na minha opinião, melhor não. Acho até que a violência aumentaria porque o recruta (que presta serviço militar) é temporário e não haveria tempo para treiná-lo. Muita gente diz que no tempo da ditadura era melhor, porque os militares estavam no poder. Ilusão. A situação no mundo era melhor, mas a violência no Brasil já estava crescendo rapidamente.