Título: Reforma universitária e inclusão social
Autor: José Tadeu Jorge
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/07/2005, Espaço Aberto, p. A2

Com a turbulência política das últimas semanas, caiu numa espécie de limbo, como tudo o mais, o debate sobre o anteprojeto de reforma universitária em discussão já há alguns meses; mas, no lapso de tempo em que o novo texto foi debatido, salvo raras vozes discordantes, em geral se concluiu que, mesmo não sendo ainda o melhor dos mundos, a segunda versão do documento representa um avanço em relação à primeira. O texto, mais enxuto, desidratou-se de um quarto de gordura e se livrou de ranços ideológicos como, por exemplo, o de tentar submeter as universidades a conselhos sociais com poder deliberativo que, sobrepondo-se às instâncias representativas já consolidadas, solapariam sua legitimidade; isto além do viés utilitarista de uma política extensionista demasiado enfática, em prejuízo do compromisso maior com os valores acadêmicos da pesquisa e da educação superior. A nova versão do anteprojeto avança também ao definir a obrigatoriedade de um terço de vagas noturnas nas universidades públicas - um fator de inclusão dos mais eficazes -, seguindo o exemplo da Constituição paulista, que já o faz há mais de 15 anos, e ao preservar as prerrogativas dos Conselhos Estaduais de Educação como órgãos reguladores das universidades estaduais - como a USP, a Unicamp e a Unesp -, evitando um centralismo indesejado e perigoso.

Ainda persistem, contudo, problemas como, por exemplo, a tentativa de definir o conceito de autonomia universitária - ou seja, de restringi-lo -, quando a Constituição brasileira já dá conta desse tópico, de forma irretocável, no seu artigo 207. Por outro lado, falta incluir enfaticamente a atividade de pesquisa, ao lado do ensino e das atividades de extensão, entre as exigências básicas para que uma instituição de ensino superior seja efetivamente reconhecida como universidade. Parece demagógica a reintrodução, a esta altura, do tema da eleição direta para reitor e vice-reitor, em substituição ao sistema de consultas indicativas, no âmbito do sistema federal de ensino superior.

E soa tímido o dispositivo (artigo 57) que fixa um mínimo de 5% da verba de custeio para a assistência estudantil (bolsas, subsídio à alimentação, moradia, programas de inclusão, etc.), quando a experiência de universidades como a Unicamp mostra que o patamar ideal de gastos para essa finalidade deve oscilar em torno de 13% dos recursos destinados ao custeio.

O avanço mais notável, entretanto, é o abandono do imediatismo das chamadas cotas étnicas em troca de políticas de ação afirmativa que levem em conta a inclusão dos estudantes oriundos da escola pública, onde seguramente estão os negros, os indígenas e os pobres de um modo geral. Diz o texto que isso se fará segundo cronogramas e metas fixados pelas universidades públicas, num prazo de dez anos, devendo-se alcançar nesse prazo 'o atendimento pleno dos critérios de proporção de pelo menos 50%, em todos os turnos e em todos os cursos de graduação, de estudantes egressos integralmente do ensino médio público'.

Sem deixar de lado a fragilidade do argumento que manda fixar um porcentual de inclusão, em vez de fazê-la por meio de ações concretas para melhorar o ensino médio e o ensino fundamental, há uma certa justiça no propósito de estimular os alunos da escola pública a postular uma vaga em universidades mantidas pelo poder público. Também nesse sentido o texto deveria ser aprimorado. É possível encontrar formas de inclusão social sem depreciação da qualidade do ensino e do mérito acadêmico. A Unicamp começou a fazêlo a partir de 2005 mediante um programa de ação afirmativa que não reproduz o sistema de reserva de vagas nem deixa de levar em conta a qualificação do estudante.

O programa da Unicamp, cujo princípio o governo paulista acaba de aplicar em seu sistema de faculdades tecnológicas, as Fatecs, consiste em atribuir um bônus de 30 pontos - numa média de 540 - ao vestibulando que tenha cursado todo o ensino médio em escola pública, e um bônus extra de 10 pontos aos candidatos autodeclarados negros ou indígenas que igualmente tenham vindo da escola pública. Esse bônus, longe de fazer tábula rasa do mérito acadêmico e sem estabelecer reserva de vaga, funciona como um critério de desempate - a favor do aluno da escola pública - num quadro de desempenhos freqüentemente equivalentes, mas cujas condições originárias são desiguais. O sistema foi elaborado a partir de um estudo de desempenho acadêmico que demonstrou que, dos alunos provenientes de escolas públicas e de escolas particulares aprovados em condições iguais no vestibular da Unicamp, os primeiros tiveram uma média de desempenho superior durante o curso de graduação.

Os resultados ficaram acima do esperado já no primeiro ano de funcionamento do programa. O porcentual de inscritos da escola pública evoluiu de 31,4% para 34,1% (um aumento de 8,6%), enquanto a taxa de aprovados foi ainda mais expressiva: subiu de 28% para 34,1%. Os negros e indígenas representam 15,7% dos matriculados da Unicamp em 2005, comparados com 11,6% em 2004. No curso mais concorrido, o de Medicina, o número de matriculados egressos da escola pública mais que triplicou. Encontrar formas apropriadas de realizar a inclusão social começa pela compreensão histórica das diferenças, mas pode ser também uma questão de método e de congruência. Neste sentido, já que o Ministério da Educação teve a coragem de trocar o conceito de reserva de vagas por programas de ação afirmativa, o anteprojeto da reforma ganharia mais peso e consistência se o governo retirasse seu projeto de cotas étnicas do Congresso, onde continua tramitando e provocando inevitáveis e previsíveis desdobramentos nas Assembléias Legislativas, inclusive na de São Paulo.