Título: Agronegócio versus agricultura familiar?
Autor: Marcos Sawaya Jank
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/07/2005, Espaço Aberto, p. A2

O Brasil é um país em que chavões e falsos conceitos são marretados com tanta freqüência que praticamente se tornam verdades absolutas. Um dos exemplos mais notórios é a falsa dicotomia que contraporia o agronegócio à agricultura familiar. O primeiro é comumente apontado como um setor eficiente, exportador, que advoga o livre comércio e seria supostamente comandado pelos grandes produtores rurais e por grandes corporações de insumos agropecuários e processamento de alimentos. Na outra ponta estaria a agricultura familiar, representada pelos pequenos produtores e pequenas agroindústrias a eles acopladas, que seriam melhores empregadores de mão-de-obra e distribuidores de renda, mas que careceriam de subsídios e proteções permanentes, justificados pelas suas externalidades sociais e ambientais. Essa falsa divisão não tem o menor fundamento. Para começar, é necessário rever o conceito de "agribusiness" desenvolvido por Ray Goldberg, em 1957, nos EUA, e traduzido, no Brasil, como "complexo agroindustrial" ou "agronegócio" por Ney Bittencourt, Ivan Wedekin e Luiz A. Pinazza, nos anos 1980, com enorme repercussão nos meios empresarial e acadêmico. O agronegócio nada mais é do que um marco conceitual que delimita os sistemas integrados de produção de alimentos, fibras e biomassa, operando desde o melhoramento genético até o produto final, no qual todos os agentes que se propõem a produzir matérias-primas agropecuárias devem fatalmente se inserir, sejam eles pequenos ou grandes produtores, agricultores familiares ou patronais, fazendeiros ou assentados.

A agricultura familiar é, portanto, apenas um segmento central do agronegócio, na medida em que representa boa parte da produção agropecuária: 84% da farinha de mandioca, 97% do fumo, 67% do feijão, 58% da carne, 52% do leite, 49% do milho, 40% das aves e ovos, 32% da soja e 31% do arroz. Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, em 14/6, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, se vale das estatísticas acima, retiradas do já antigo Censo Agropecuário 1995/96, para pleitear a necessidade de maior proteção para os agricultores familiares, por meio de subsídios diretos e proteções de fronteira, com base no conceito de "soberania alimentar".

Se subsídios talvez sejam, de fato, necessários para manter a agricultura familiar brasileira, poucas coisas seriam mais nefastas para ela do que a ampliação do protecionismo internacional travestida no conceito de "soberania alimentar". Vejamos:

Se a idéia da soberania alimentar se espalhar, traduzida, por exemplo, em tarifas mais altas, produtos excluídos e novas salvaguardas no contexto da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), mercados fundamentais para o País poderão se fechar nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Vale lembrar que, nos últimos quatro anos, nossas exportações agrícolas cresceram 70% para os países desenvolvidos e a impressionante cifra de 205% para os países em desenvolvimento, sendo que as duas regiões já praticamente se igualam em sua importância relativa.

O Brasil exporta US$ 30 bilhões e importa apenas US$ 3,2 bilhões em produtos do agronegócio, posicionando-se como exportador líquido em quase todos os produtos da "agricultura familiar" citados pelo ministro. Um dos exemplos mais notórios de mudança radical nos padrões de comércio vem do setor lácteo, que buscou proteção doméstica quando éramos importadores líquidos num mercado altamente distorcido pelo protecionismo. Hoje, porém, o Brasil já é exportador líquido de lácteos e vem sendo apontado, juntamente com Argentina, Austrália e Nova Zelândia, como um dos principais ganhadores da liberalização do setor. Nesse novo contexto, abrir o mercado mundial é uma estratégia bem mais interessante para os produtores do que fechar o mercado interno.

Não há nenhuma ameaça real pesando sobre a agricultura familiar nas atuais frentes de negociação internacional. A Alca e o Acordo União Européia-Mercosul estão parados e a Rodada de Doha vai, no caso dos países em desenvolvimento, produzir cortes menores nas tarifas consolidadas na OMC. Nossas tarifas agrícolas foram consolidadas em 35% e 55% na OMC, sendo que hoje aplicamos tarifas da ordem de apenas 11%. Ou seja, (improváveis) cortes profundos nas tarifas consolidadas não afetarão o nível corrente de importações do País. Além disso, 65% das importações agrícolas brasileiras entram no Brasil com tarifa zero ou muito baixa, devido aos acordos preferenciais no âmbito do Mercosul e com outros países latinos. A Rodada de Doha não vai alterar esse quadro.

O setor agrícola já recebe apoio da sociedade brasileira por meio de taxas de juros subsidiadas nos créditos de custeio e de investimento. No caso da agricultura familiar, os juros nominais dos programas de governo variam entre 1% e 7,25% ao ano, além de um generoso bônus para "bons pagadores" que pode chegar a 46% do montante principal.

Com a vitória em dois contenciosos agrícolas importantes e a liderança do G-20, o Brasil é um dos países que mais têm lutado contra os subsídios e proteções internacionais à agricultura. O País não deveria ter discurso ambíguo na matéria. Principalmente, não tem cabimento pleitearmos o direito de aplicar em casa as piores práticas que estamos solenemente condenando nos outros países.

Se já é difícil convencer Genebra, Washington, Bruxelas e outras capitais de que merecemos um espaço adicional para crescer no mercado agrícola mundial, a tarefa torna-se virtualmente impossível se Brasília não tiver clareza quanto aos reais interesses de longo prazo do agronegócio brasileiro como um todo. Para isso basta perguntar aos agricultores familiares se eles preferem uma pequena e inútil proteção adicional sobre o US$ 1,2 bilhão importado de países fora da região de comércio preferencial ou ampliar os US$ 30 bilhões hoje exportados. O Brasil precisa ter posição única e definitiva sobre a matéria. O comércio exterior teria tudo para ser uma das poucas áreas de convergência de interesses das nossas antigas idiossincrasias agrícolas. Mas, infelizmente, somos obrigados a constatar que mesmo esta área não está imune a opiniões díspares e ambigüidades.