Título: Lula tem o que fazer
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Fonte: O Estado de São Paulo, 05/07/2005, Notas & Informações, p. A3

A revelação de que pouco mais de um mês depois da posse do presidente Lula o publicitário mineiro Marcos Valério - apontado como o caixa do "mensalão" - intermediou e avalizou um empréstimo de R$ 2,4 milhões do BMG ao PT, do qual ele viria a pagar uma prestação de R$ 350 mil, representa um golpe mortal na cúpula do partido. Os seus estilhaços alcançam o Palácio do Planalto. Era literalmente o que faltava para escancarar as relações espúrias entre o tesoureiro petista Delúbio Soares, outro avalista do financiamento, o "homem da mala" seu comparsa e a administração com a qual ele celebrou (em mais de um sentido) contratos milionários tidos como possivelmente superfaturados pelo relator da CPI dos Correios, deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR). A evidência também atingiu em cheio o presidente do PT, José Genoino, que primeiro desmentiu o negócio ao qual dera o seu aval por escrito, depois jogou o vexame da participação de Valério nas costas de Delúbio e por fim disse que assinou o contrato sem ler. A nova denúncia alcançou também o então ministro da Casa Civil, José Dirceu, que recebeu em palácio a diretoria do BMG, levada a ele pelo valoroso publicitário, para que a casa bancária aceitasse a transação pedida pelo partido. O encontro, sobre cujo conteúdo apenas se pode especular, foi um ato absolutamente incompatível com a função pública do chamado "superministro" de Lula. Confirma a acusação do deputado Roberto Jefferson de que a verdadeira sede do PT funcionava no 4.º andar da sede do governo da República.

A história empesta ainda mais o cenário político, mas não muda a natureza do problema que os brasileiros não imaginavam que um dia iria desabar sobre o avalista por excelência da imagem de retidão do partido que sempre gravitou ao seu redor e em larga medida se nutriu do seu formidável carisma. Mas, no nível a que chegou, a crise deixa poucas escolhas ao presidente Lula. Para tentar salvar o seu governo e a sua biografia, não poderá se esquivar de algumas decisões patentemente difíceis e, por isso mesmo, politicamente heróicas. Elas dariam direção e substância à "agenda positiva" que por enquanto não passa de uma expressão retórica. A sorte de Lula é que, para se lançar a tanto, ele dispõe da plataforma construída pela atitude responsável que a oposição vem tomando.

Desde logo, bem faria o presidente "de todos os brasileiros" se deixasse de socorrer o PT no seu momento da verdade. A hora é de deixar o partido fazer o que lhe aprouver. Um ato decerto sem precedentes - mas a crise o que é? Ao mesmo tempo, espera-se que, tendo enfim percebido a futilidade de tentar abafar as apurações dos malfeitos expostos, Lula instrua os seus no Congresso a desistir de vez do golpe de criar a CPI diversionista da compra de votos. Está claro que "é tudo uma coisa só", como diz o deputado tucano Alberto Goldman: loteamento político e uso das estatais para irrigar o caixa 2 de partidos, tráfico de influência, venda de facilidades e suborno de políticos - corrupção, numa palavra. O caso dos Correios é apenas um fio da meada - ou a primeira peça desse puzzle que se vai completando mais rapidamente do que se esperava.

No plano do governo, é tarde para pedir que a reforma ministerial ignore o recente acordão fisiológico do presidente com o PMDB governista. Por incrível que pareça, o negócio - que também é de compra de apoio, embora sem dinheiro - foi fechado quando já eram públicas as denúncias da criatividade do PT na matéria. Mas é outra a reforma que pode ser a salvação de Lula. Trata-se do saneamento da administração federal, o equivalente à limpeza das proverbiais cavalariças de Áugias. A mais extensa malha fina, com a máxima visibilidade, deveria ser lançada sobre os contratos passíveis de conter maracutaias, freando-se a execução de todos quantos mostrem indícios de irregularidades, sobretudo na área da publicidade oficial. Em paralelo, o Planalto começaria a "despolitizar" a máquina, trocando políticos por técnicos e cortando cargos de confiança.

Além disso, correspondendo à atitude positiva da oposição, que continua acreditando na inocência de Lula ("até agora nada indica que o presidente Lula tenha diretamente algo que ver com tudo isso", escreveu Fernando Henrique anteontem no Estado), ele poderia buscar uma pauta legislativa suprapartidária. Tão ousado dever de casa talvez esteja além das forças do presidente. Mas, a esta altura, o que lhe resta?