Título: Sai um zero e entra outro
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/07/2005, Economia & Negócios, p. B2

O presidente Lula parece interessado em dar novo choque de credibilidade à política econômica. Comprou a proposta do ex-czar do governo militar, Delfim Netto, de garantir déficit nominal zero. Aparentemente, seu sucesso se assentaria no entendimento de que será instrumento e condição de governabilidade. Os passos iniciais incluíram o grande jantar de ontem à noite em Brasília do qual participaram autoridades, empresários e políticos.

Questões técnicas sobre a idéia foram comentadas na coluna do dia 19 de junho (Tábua de salvação), mas não custa resumi-las. É o compromisso a ser assumido pelo governo de pagar integralmente os juros da dívida pública com recursos orçamentários. Hoje atingem R$ 170 bilhões por ano, mas são apenas parcialmente pagos. A maior parte desses juros é reincorporada ao principal da dívida. Por isso ela continua crescendo, apesar da sobra de arrecadação (superávit primário) de cerca de R$ 90 bilhões usada no abatimento do principal devido.

A proposta é garantir o pagamento integral dos juros em poucos anos. Se for crível, os juros devem cair verticalmente, porque acabam as dúvidas sobre a capacidade de pagamento da dívida. E, se os juros caírem, a despesa com eles ficará substancialmente mais baixa e mais fácil de ser paga. Na prática, é provável que não seria preciso mais do que o atual superávit primário (cerca de R$ 90 bilhões anuais) para cobrir a despesa com juros. Assim, começariam a sobrar recursos, hoje empenhados no serviço da dívida, para investimento e aplicação em programas sociais.

A proposta exige mais do que a simples desvinculação das despesas da União. O Orçamento é tremendamente rígido. Tem, por exemplo, de reservar 18% da arrecadação líquida para despesas com Educação e o aumento das despesas com Saúde deve ser equivalente ao aumento do PIB. Sobram menos de 20% para as despesas livres.

"Se a decisão for adotar o déficit nominal zero, não bastará garantir a desvinculação. Só as despesas com pessoal do Ministério da Educação são superiores a 18% da arrecadação líquida. Será preciso cortar implacavelmente as despesas", adverte o especialista em Administração Pública Raul Velloso.

A desvinculação das despesas da União e o que a acompanhe só podem ser feitos por meio de reforma da Constituição, o que exige quórum qualificado, aprovação com dois terços dos votos e duas votações em cada Casa do Congresso. Além disso, pressupõem regulamentação (lei complementar), a ser aprovada também com quórum qualificado e tal.

E aí mergulhamos na intrincada questão de poder. Para que a idéia passe, será preciso uma imensa costura política, justamente no momento da maior crise do governo Lula, e a aprovação de medidas impopulares às vésperas das eleições. É substituir o programa Fome Zero por uma rigorosa ortodoxia na política econômica, sem poder dar a desculpa de que foi imposição do FMI.

Isso parece definir que a nova meta fiscal (déficit nominal zero) não pode ser incorporada ao Orçamento de 2006, por falta de tempo para tramitação da reforma. E, assim, dificilmente a idéia poderá ser executada no primeiro mandato do presidente Lula, observa Raul Velloso. E, se extrapolar para a administração que começa em 2007, será preciso saber até que ponto fará parte dos compromissos do governo seguinte, que pode ser liderado por outro presidente.

Em todo o caso, é um bom sinal que esse tema esteja sendo discutido agora.