Título: Fazendas de Valério na Bahia, uma ficção comprada por R$ 500
Autor: Biaggio Talento
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/07/2005, Nacional, p. A8

Procurações assinadas por casal de agricultores permitiram ao publicitário obter escrituras de posse de propriedades inexistentes Biaggio Talento Enviado especial SÃO DESIDÉRIO As fazendas Bom Jesus I e II, que integram a lista das dez propriedades rurais das empresas do publicitário Marcos Valério Fernandes na região oeste da Bahia, são imóveis fictícios. Graças a assinaturas obtidas do casal de agricultores Laurita Maria da Conceição Araújo, de 72 anos, e Aristóteles Gomes de Araújo (já falecido), o intermediário José Roberto Paixão "produziu" procurações representando os dois, elaborou escrituras de posse das duas "fazendas" e as vendeu para a DNA Propaganda Ltda em 26 de setembro de 2000. Os documentos de venda indicam que as áreas rurais que pertenceriam à Fazenda Barra foram rebatizadas com os nomes de Bom Jesus e que cada uma das propriedades foi negociada por R$ 100 mil. Elas foram passadas para a DNA no cartório de São Desidério no livro 2 do registro geral sob o número R-1-2735 em 24 de janeiro de 2002. Os representantes legais da DNA citados na escritura de venda são Marcos Valério Fernandes e Daniel da Silva Freitas. É bem provável que Paixão tenha recebido na transação cerca de R$ 5 mil, valor cotado na região para se comprar uma posse de propriedade inexistente. Geralmente, o objetivo de quem registra imóveis rurais fraudulentamente é conseguir documentos legais para "provar" ser dono de grande patrimônio e poder apresentá-lo como garantia na obtenção de empréstimos bancários. Valério, por exemplo, apresentou as fazendas Barra I, II e III, que pertencem na realidade à empresa Carvic Agropecuária, como garantia de uma dívida de execução judicial. Por essa razão, está sendo processado na 6.ª Circunscrição Judiciária de Brasília por falsidade ideológica e uso de documentos falsos.

O publicitário aparentemente também realizou manobra fraudulenta semelhante para dar propriedades patrimoniais fictícias como garantias à dívida que tem junto ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) de R$ 8,7 milhões e pela qual também está sendo executado judicialmente. Seis "fazendas" adquiridas em São Desidério pela DNA, as Barra I, II e III, Veredas e Bom Jesus I e II, que custaram R$ 500 mil, foram supervalorizadas em prazo curtíssimo. Em 2003 o perito mineiro Marcos Ferreira foi contratado pela DNA para atualizar o patrimônio e definiu que as referidas fazendas valeriam R$ 7 milhões. No ano passado outro perito, da região oeste da Bahia, Landulfo Silva, voltou a avaliar as propriedades a pedido do publicitário chegando ao valor de R$ 9,1 milhões. Com um patrimônio fictício de R$ 9,1 milhões a DNA pôde dar as fazendas como garantias no processo de execução do INSS.

'MERRECA '

Se fossem, de fato, donos das fazendas, dona Laurita e seu Aristote teriam possuído no patrimônio da família dois latifúndios: a Fazenda Bom Jesus I teria 3.510 hectares e a Bom Jesus II, 3.507 hectares, o que certamente propiciaria uma situação bem melhor que a atual para a família do agricultor. Usada como "laranja" incauta na fraude de "fabricação" de dois latifúndios, Laurita diz que recebeu menos de R$ 500.

No início de 1999, Paixão pediu que os dois assinassem um papel que provavelmente usou para fazer a escritura da Fazenda Bom Jesus I. Aristóteles morreu em setembro de 1999. Depois dessa data Paixão voltou à casa de Laurita pedindo que assinasse outro papel, possibilitando a elaboração da escritura da Bom Jesus II. Como Aristote havia morrido, Paixão certamente falsificou sua assinatura para a segunda procuração.

Além de Laurita, a reportagem do Estado localizou na periferia de São Desidério o casal de agricultores Maria e Georgino Tolentino de Siqueira, que seriam os "proprietários" da Fazenda Barra I. A fraude foi semelhante à praticada com as fazendas Bom Jesus: o intermediário João Antonio Santana obteve as assinaturas dos dois, fabricou uma procuração e os apresentou no documento como os donos da terra, que foi vendida por R$ 100 mil para a DNA em 1.º de junho de 2001.

Georgino e Maria garantem que nunca tiveram terras e foram enganados por Santana, que não lhes pagou nada.

A juíza local, Karla Moreno Gregoretti, instaurou há um ano processo de investigação no cartório de títulos e hipoteca, depois que os advogados da empresa carioca Braskan Energética S. A. conseguiram provar que existem na região vários imóveis com mais de uma escritura.O processo está tramitando, mas não há uma decisão porque a titular do cartório, Ana Elizabete Santos, entrou com representação argüindo a suspeição da juíza. Karla constatou irregularidades no registro de imóveis, assinalando que a prática é conhecida como "terra sobre terra".