Título: O atraso do Mercosul
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/07/2005, Notas & Informações, p. A3

Será mais uma vez o assunto errado, na hora errada, no lugar errado. Representantes da Argentina e do Brasil vão discutir nesta sexta-feira, no Rio de Janeiro, uma nova fórmula para adoção de salvaguardas no comércio entre sócios do Mercosul. A nova proposta é melhor que a apresentada originalmente pelo governo argentino, segundo o ministro brasileiro de Relações Exteriores, Celso Amorim, porque já não inclui um gatilho de ação automática. Mas não importa que a fórmula tenha sido revista. Diplomatas e outros funcionários dos países do bloco deveriam reunir-se para discutir o fortalecimento da associação, em vez de iniciativas que só podem resultar em retrocesso. Trata-se, portanto, de uma discussão inoportuna, que os governos da região deveriam enterrar de uma vez por todas para se ocupar somente do que valha a pena.

Os países do Mercosul não precisam, especialmente para seu intercâmbio, de mecanismos de proteção mais fortes do que aqueles oferecidos pelas normas globais de comércio. Países não formam blocos de livre comércio e muito menos constituem uniões aduaneiras, status formal do Mercosul, para ampliar barreiras. Unem-se para comerciar mais intensamente, para multiplicar as oportunidades de investimento e para ganhar poder de competição internacional.

O Mercosul foi concebido inicialmente com esses objetivos ¿ e também, naturalmente, para constituir uma etapa de um projeto mais ambicioso e muito mais importante: o estreitamento de relações políticas entre os associados e a constituição progressiva de uma cidadania regional. Todas essas metas continuam distantes, porque o Mercosul não é de fato uma união aduaneira, nem conseguiu, em mais de dez anos, tornar livre o comércio entre seus associados.

Ainda hoje o secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Márcio Fortes, e o secretário argentino da Indústria, Miguel Peirano, devem discutir duas iniciativas indesejáveis: a limitação de embarques de calçados brasileiros para a Argentina e a imposição de cotas ou de preços mínimos, no Brasil, para vinhos argentinos inferiores.

Os dois lados estão errados. O Brasil não tem de aceitar a restrição a calçados brasileiros na Argentina, mesmo porque não há nenhuma invasão daquele mercado por produtores do lado de cá.

Há simplesmente um incontrolado impulso protecionista dos produtores argentinos de calçados, que repetiram a manobra realizada por empresários de outros setores e receberam apoio de seu governo. Os calçadistas brasileiros, para evitar maiores problemas, acabaram ¿negociando¿ a limitação. Em contrapartida, não se justifica a adoção de barreiras para a concorrência argentina no mercado brasileiro de vinhos. É preciso reconhecer a situação vantajosa de argentinos, chilenos e uruguaios, nesse campo, e deixar que o produtor brasileiro tente ganhar competitividade.

Parte da indústria vinícola nacional passou por mudanças tecnológicas importantes nos últimos 10 anos e conseguiu resultados consideráveis. Cabe ao governo prestar-lhe o apoio técnico e financeiro que for possível, sem criar mais barreiras do que as normais e necessárias. É especialmente importante que barreiras desse tipo não sejam criadas como respostas a iniciativas protecionistas de outros países. A reação brasileira apenas servirá, nesses casos, para legitimar ações inaceitáveis de parceiros do Mercosul.

Há mais de um ano as autoridades argentinas têm oferecido só um tipo de contribuição à política do bloco: propostas que, se aprovadas, servirão apenas para facilitar a criação de barreiras entre os países da região. A discussão das assimetrias tem ficado restrita a idéias que só podem resultar em retrocesso. Ora se fala em salvaguardas unilaterais, ora se propõem limites à absorção de investimentos estrangeiros pelo Brasil, como se isso tornasse mais atraentes os demais mercados do bloco. É pela adoção de políticas saudáveis e pela construção de economias sólidas que os quatro sócios do Mercosul conseguirão atrair mais capitais externos. E, se cuidarem mais seriamente de acordos com os principais mercados, a começar pelo americano e pelo europeu, os governos do bloco farão do Mercosul o que ele deveria ser. O resto é atraso de vida.