Título: Confusão ideológica
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/07/2005, Economia & Negócios, p. B2

Quando justificam desvio de recursos públicos com o argumento de que não agiram em benefício próprio, certos dirigentes do PT revelam profunda confusão ideológica. O reconhecimento dessa confusão talvez ajude a entender o que está acontecendo. Para esses, pagamento de mensalão e compra de apoio político com recursos que, em última instância, são da República, não caracterizam corrupção.

Diante da profusão de provas ou de confissões de desvio de verbas, alguns líderes do PT garantem que não aumentaram seu patrimônio familiar e até se prontificaram a abrir seu sigilo bancário e fiscal.

Foi isso o que afirmaram o ex-tesoureiro Delúbio Soares e o ex-secretário Sílvio Pereira. O ex-ministro da Casa Civil José Dirceu declarou que tudo o que fez foi em benefício do Partido e da "causa". Por isso, não tem do que se arrepender.

Certamente estão sendo sinceros. Parece não lhes passar pela cabeça que patrimônio público ou cargos públicos não podem ser tomados por um partido político, por mais louváveis que sejam suas causas.

Não se trata da aplicação do princípio maquiavélico de que os fins justificam os meios. Tudo se passa como se velhos pontos de vista das antigas esquerdas não tivessem sido revistos. Essas lideranças se comportam como se a atual atuação política não passasse de um estágio da luta de classes. Assim, vêem como justificável a "expropriação de recursos da burguesia", desde que em benefício da causa do proletariado, da qual se julgam vanguarda. Mesma atitude vale para o aparelhamento do Estado: as posições de administração pública, pensam, podem e devem ser usadas para esses objetivos.

Pelas mesmas razões, subsiste na cultura e na prática do PT a concepção de que liberdade de informação não passa de instrumento de controle dos mais fracos pelos mais fortes. E que as denúncias de corrupção que irrompem pelos jornais e pela TV são ações da "imprensa burguesa" dominada pela direita, com objetivo de derrubar o governo dos trabalhadores. Não foi isso que disse Delúbio Soares?

No fundo, é a mesma síndrome que em 2003 impediu que o governo Lula condenasse a ação terrorista das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), mesmo depois que o movimento passou a praticar atentados contra civis e a trabalhar estreitamente com narcotraficantes, inclusive com atuação no Brasil, como Fernandinho Beira-Mar. Nessa matéria o governo Lula preferiu omitir-se, sob alegação de que queria preservar a eventual condição de mediador entre o Estado colombiano e os guerrilheiros.

Exigências de competência gerencial e de responsabilidade fiscal na administração do patrimônio público; necessidade de privatizar empresas estatais, de dar autonomia operacional ao banco central, de assegurar a atuação das agências reguladoras como entidades do Estado independentes do governo - tudo vinha sendo visto e, provavelmente continua sendo, como imposição de princípios neoliberais pelas potências hegemônicas e pelas classes dominantes.

Afinal, quando pregou "a ruptura", o que de fato pretendeu o Congresso do PT, de 2001, realizado em Olinda, senão a denúncia dessa superestrutura imposta pela elite dirigente?

Mesmo depois da queda do Muro de Berlim e da falência do socialismo real, uma grande parte das esquerdas brasileiras não conseguiu livrar-se dos antigos parâmetros ideológicos. Não conseguiu incorporar os valores republicanos, que exigem definitiva separação entre o interesse público e o interesse privado. Infelizmente, o País - e não só essa esquerda desatualizada - vai pagar caro por isso.