Título: Um núcleo duro para a política fiscal?
Autor: Dionísio Dias Carneiro
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/07/2005, Economia & Negócios, p. B2

Há um paradoxo aparente na tranqüilidade com que os mercados financeiros têm absorvido a crise política brasileira. Quando se olha para as crises passadas, as sensações são mistas: afinal, por maiores que possam ser as semelhanças históricas, crises políticas não são produzidas em série. Portanto é preciso, para generalizar conclusões, um grau respeitável de abstração e concentração em algum foco específico. O foco mais atual é o efeito da crise sobre as variáveis financeiras. Bond traders e operadores de câmbio são os equivalentes modernos dos operadores de radar e sonar, popularizados nos filmes de guerra submarina de minha juventude. Vigilantes sensíveis são pagos para olhar fixo nas telas de cotações dos títulos de dívida e manter os ouvidos atentos às mudanças de tom de analistas, dirigentes e banqueiros centrais. Os sinais de retorno são imediatamente processados e transformados em decisões de compra e venda, que influenciarão, por sua vez, a composição desejada das carteiras dos poupadores finais em todo o mundo. Entre uma e outra decisão heróica de comprar ou vender, desafiam as convicções e forçam as analogias históricas.

Até que ponto o passado recente ajuda a entender o presente e a prever o futuro? Algumas lições gerais derivadas das crises passadas ficaram na memória dos analistas, dos investidores e dos dirigentes. Há um processo de aprendizado que é valioso para entender e vislumbrar os desdobramentos futuros. Na atual crise política brasileira, algumas dessas lições são embaraçosas, mas explicam a relativa frieza dos mercados: um exemplo é a trilogia formada pelas idéias de que corrupção política não é novidade no mundo, sistemas políticos que combinam populismo com corrupção não são novidades na América Latina e impunidade não é novidade no Brasil. Nessa visão cínica, os investidores no Brasil não podem se dizer chocados com os acontecimentos recentes e vão reagir de maneira mais fria do que nós, brasileiros, emocionados diante dos fatos recentes.

Outras lições buscam relações funcionais entre as saídas da crise e os rumos da política econômica e tentam encontrar razões para a segmentação. Um exemplo é a idéia de que a sobrevivência do governo Lula não será facilitada por uma guinada populista na política econômica. A demonização dos credores, dos estrangeiros ou dos empresários que financiavam a direita não são mais convincentes nem para o PT. A contaminação do risco econômico pelo risco político é menos provável, dada a manutenção e o aprofundamento das escolhas de Lula em matéria de política econômica. Finalmente, outras análises sobreenfatizam o ambiente externo: alta liquidez, crescimento econômico surpreendentemente resistente e fluxos de comércio em expansão têm favorecido o aumento da abertura financeira em paralelo à abertura comercial. Para o Brasil, esta dupla abertura diminui a dependência das perspectivas de sucesso dos investimentos no País a eventos e sustos locais, desde que não haja ruptura das regras básicas de abertura e de respeito aos contratos.

Por conveniência ou por convicção adquirida no cargo, Lula tem mantido inalterada a atitude de nutrir o bebê da confiança, em vez de jogá-lo pelo esgoto com os detritos de seu governo. Os air bags nem precisaram, até agora, demonstrar sua eficácia, pois, por construção, eles só são testados quando há o impacto das paradas súbitas. E estas (toc-toc-toc) não ocorreram. Mas isso não significa que o governo deva ficar à espera de uma batida de frente para testar sua eficácia. Entre uma volta e outra do parafuso, que esmaga a cúpula do PT, podem ser reforçadas as condições de governabilidade. Nesse contexto, o foco sobre o reforço fiscal contido na proposta de Delfim Netto de traçar uma meta para o déficit nominal é uma contribuição valiosa. A exemplo do que já ocorreu em outros países (EUA, lei Gramm-Rudman-Hollings; Europa, Pacto de Crescimento e Estabilidade), não há substituto para o fortalecimento do caráter intertemporal do equilíbrio fiscal. Trata-se de construir um núcleo duro econômico eficaz em substituição ao núcleo duro baseado na bazófia, na truculência e no marketing de idéias ultrapassadas. A busca deste núcleo duro na política fiscal é tarefa complexa, pois exige empenho para prosseguir a reforma da Previdência e desenterrar uma reforma tributária, compatível com as aspirações de crescimento sustentável. Mas vale a pena tentar.