Título: Remédios estragados
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/07/2005, Notas & Informações, p. A3

Menos de duas semanas após o Ministério da Saúde ter dado o primeiro passo para quebrar a patente do remédio Kaletra , por meio de uma portaria que declarou de ¿interesse público¿ essa droga utilizada no tratamento contra aids, o próprio governo divulgou um levantamento mostrando que vários lotes de 18 remédios de seus estoques, quase todos relacionados a essa doença, estão com validade vencida. Entre os medicamentos cujo único destino agora é o lixo, está a combinação ritonavir/lopinavir, a fórmula do Kaletra . Esses não são fatos isolados. As autoridades que pretendem decretar a licença compulsória de um dos mais caros medicamentos usados no coquetel antiaids, sob a justificativa de que sua fabricação por laboratórios nacionais permitiria reduzir seu preço de venda, são as mesmas que se revelaram incapazes de armazená-los de forma minimamente racional. Não apenas falharam na fiscalização da entrega e no cronograma de distribuição desses remédios, como também não conseguiram negociar com os fornecedores a substituição das drogas vencidas. Para se ter uma idéia da magnitude do problema, entre 1997 e 2004, o número de pessoas atendidas por programas governamentais de tratamento de aids pulou de 36 mil para 153,6 mil.

De todos os lotes de remédios estocados no Ministério da Saúde, quatro deveriam ter sido utilizados até junho de 1999. E 59 perderam validade entre 2003 e 2005. Ou seja, durante a gestão do ministro Humberto Costa, o mentor da quebra de patente do Kaletra .

O mais grave é que esta não foi a primeira vez, desde a posse de Costa, que o Ministério da Saúde deu mostras de descontrole no cronograma de aquisições e distribuição de medicamentos para pacientes de aids. No início de 2005, o Brasil passou por uma grave crise de desabastecimento de anti-retrovirais. Na época, o ministro que deixou o cargo quarta-feira atribuiu o problema a erros de compra ocorridos no governo anterior.

Segundo Costa, os pedidos não eram compatíveis com a demanda. Com o tempo, no entanto, descobriu-se que, entre outros motivos, isso acontecia por inépcia administrativa. Além de ter feito a encomenda com atraso, o Ministério da Saúde havia perdido muito tempo para repassar as verbas aos laboratórios nacionais. A mesma inépcia pode ser constatada no episódio dos medicamentos com validade vencida. Alguns dos lotes doados entraram nos estoques já próximos da data de vencimento e o governo do PT simplesmente não conseguiu distribuí-los em tempo.

Outros lotes até agora não foram entregues a doentes e as autoridades do setor de saúde, ao tomar ciência de que eles deveriam perder sua validade entre maio e outubro deste ano, não conseguiram negociar sua substituição com os fabricantes.

Há ainda o caso de contratos de compra firmados pelo governo anterior e que os atuais dirigentes do Ministério da Saúde, após tentar rompê-los, por terem modificado os critérios de escolha, foram acionados judicialmente e terminaram obrigados a adquiri-los.

Em sua defesa, o ministro agora substituído alegou que ao assumir o cargo encontrou remédios comprados ¿em quantidades que superavam as necessidades da rede pública¿ e retomou o surrado discurso da ¿herança maldita de FHC¿. Suas explicações, contudo, não foram levadas a sério pelos setores interessados. ¿É uma mostra inquestionável de incompetência¿, disse Mário Scheffer, diretor da ONG Grupo Pela Vidda.

Como Humberto Costa deixou o cargo, com a reforma ministerial, era de se esperar que o presidente Lula indicasse para seu lugar um profissional competente, capaz de pôr ordem no Ministério da Saúde e de formular políticas para o setor sem o enviesamento ideológico subjacente à discussão sobre a quebra de patente do Kaletra . Em vez de tratar a questão como uma luta do bem contra o mal, convertendo as multinacionais farmacêuticas em vilãs e os fabricantes nacionais de genéricos em heróis, seria necessário que o novo ministro tivesse capacidade de gestão e diálogo com todos os setores ¿ laboratórios, ONGs, especialistas em saúde pública e pessoas infectadas pelo HIV.

Não foi com essa preocupação, no entanto, que Lula escolheu o substituto de Costa.