Título: Todos os olhos dos presidentes
Autor: Ivan Finotti
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/07/2005, Aliás, p. J3

Para a historiadora Maria Celina D'Araújo, Lula não deve ter ignorado o esquema do mensalão

"Meu ponto é que ele sabia." Assim a doutora em Ciência Política e historiadora Maria Celina Soares D'Araújo responde a uma das questões mais ouvidas desde o início da crise do mensalão. Seja na CPI , seja nas mesas de bar, todos se perguntam: Lula sabia do esquema ou não? Maria Celina, autora de duas dezenas de livros sobre presidentes brasileiros, foi buscar nos arquivos as referências para sua opinião. "Historicamente, não existe isso de isolar o presidente. Não no sentido de 'vamos fazer as coisas sem que ele saiba';. Não existe esse biombo para impedir que a informação chegue a ele. O que há é uma blindagem para poupar o presidente", afirma ela, que também é professora de Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora sênior no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDoc).

Em depoimento ao Aliás, Maria Celina D'Araújo listou diversos exemplos dos últimos 50 anos. Exemplos que mostram que presidentes nunca são pegos de surpresa numa crise política. Exemplos que a fazem pensar que os presidentes sempre sabem.

LULA SABIA?

O presidente tem de delegar, mas isso não significa que ele não esteja sabendo. É o caso de Lula. Ele delegou, e muito. Acho que Lula é uma pessoa que tem inapetência para o governo, para a administração pública. Se olharmos sua trajetória, ele começou como líder de sindicato, presidente de sindicato, deputado federal - na qual teve uma atuação pífia; não gostava daquilo. Nunca mais voltou à Câmara, a rotina o chateava. Ele é basicamente um grande líder social, líder da mobilização social, de massas, com capacidade de sensibilizar multidões. Mas isso é diferente de uma pessoa com tino administrativo, que tem gosto pela administração pública. Dependendo dessa habilidade, o presidente vai delegar mais ou menos.

No caso do Lula, creio que desde o início da campanha ele sabe tudo o que acontece. Ele apenas delegou à direção do partido o poder de tomar decisões. Apenas delegou ao marketing, no caso Duda Mendonça, a tarefa de dizer como ele iria se apresentar em público, desempenhando um papel que era orientado. Isso é diferente de dizer que não sabe o que acontece. Ele sabe. Sabe que houve facilidades financeiras para a campanha. Sabe que a campanha dele foi feita sem dinheiro escriturado. Só que, na política brasileira, essas coisas infelizmente ocorrem. E não acontece nada. Fazer campanha com dinheiro não declarado à Justiça Eleitoral, como diz Roberto Jefferson, todo mundo faz. E a gente sabe que isso é corrente. Mas a gente sabe que também é corrente que se faz campanha assim e não acontece nada. Só que agora aconteceu.

PRESIDENCIALISMO BRASILEIRO

No caso do presidencialismo brasileiro há algumas peculiaridades em relação ao de outros países. É um presidencialismo que chamamos de imperial, um sistema de governo em que a figura do presidente se superpõe aos demais poderes, ao Judiciário e ao Legislativo. A analogia com o Império vem de que o imperador detinha o poder de todos os poderes. Era a sua figura que expressava e materializava o poder do Estado. Quando inauguramos a República, transferimos ao presidente essa característica. O presidente da República é o chefe de Estado, o chefe de governo, o líder do país.

É muito interessante observar na cultura brasileira como as pessoas falam do presidente. Falam dos seus problemas, das suas dificuldades, do buraco na rua, fila no banco, criança no farol, qualquer problema que mexa com o sentimento de justiça ou injustiça, as pessoas logo dizem: "Mas está vendo, o presidente também não faz nada". As pessoas associam a solução de qualquer problema, seja na esquina, seja em grandes esquemas de corrupção, ao presidente da República. Uma coisa muito interessante é ver, nos arquivos de Vargas ou de João Goulart, por exemplo, a quantidade de cartas que as pessoas mandam. Uma infinidade. Elas pedem de tudo - emprego, indicação, remédio e até dinheiro emprestado.

ESTILOS DIFERENTES

Acho que o presidente nunca está alheio ao que se passa. Sempre tem em volta alguém que funciona como olhos e ouvidos. O presidente não controla tudo, isso é outra coisa. Mas ele sabe o que está acontecendo e, se não sabe 100%, sabe 99%. Agora, vamos pegar Getúlio Vargas e Ernesto Geisel. São dois estadistas que liam tudo. A gente pega documentos, relatórios ou pareceres que os assessores produziam. Vargas e Geisel liam, anotavam - essa é a vantagem de um mundo que tinha papel e lápis. Eles acompanhavam nesse nível de detalhamento e proximidade. Eram pessoas que tinham uma vocação administrativa e sentiam prazer fazendo isso. É diferente, por exemplo, do estilo de Juscelino Kubitschek. Ele não era uma pessoa do papel; era de inaugurações, de ir às obras, conversar com as pessoas nos locais. Seu grande prazer era ver as coisas ficar prontas. Estava sempre ali, acompanhando.

E há outros com menos aptidão para acompanhar, quer no papel, quer no dia-a-dia, a administração pública. É o caso do presidente Médici. Era um presidente que sabia muito bem o que estava acontecendo, era bem informado. O chefe do SNI era amigo dele. O chefe da Agência Central também. De tudo ele era informado, tudo ele escutava, e então ia ver futebol. Delegou ao ministro do Exército a política da repressão. Delegou a Delfim Netto a política econômica. Era informado do que todos estavam fazendo e pronto.

GETÚLIO VARGAS (1951-1954)

Getúlio se matou porque foi pego de surpresa numa crise política? Foi pego de surpresa, sim, mas pelo atentado da Toneleros. Ficou perplexo ao descobrir que seu chefe da guarda pessoal era o mandante do crime. O grande fator de desestabilização foi o atentado a Lacerda liderado por Gregório Fortunato, um homem primário que achou que, se matasse Lacerda, resolveria o problema do país. Aí Getúlio foi pego de surpresa. Mas veja bem: ele sabia da extensão da crise política.

Lacerda, o líder da oposição, era um líder golpista. Pedia golpe de Estado, pedia intervenção militar com bastante freqüência. Quando Getúlio saiu candidato, Lacerda lançou aquele lema, que é um primor da não-democracia: "Getúlio não pode ser candidato. Se for candidato, não pode ganhar. Se ganhar, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar. Se governar, tem de ser deposto". Então, Getúlio sabia que estava num campo político em que o conflito era exacerbado. A carta-testamento tem um texto preparado com bastante antecedência. Ele previa que as coisas podiam terminar mal para ele. Podia acabar em golpe, em guerra civil. Não foi pego de surpresa politicamente.

J. KUBISCHEK (1956-1961)

Pego de surpresa, jamais. Juscelino saiu desmoralizado, basicamente por causa da inflação, mas sabia com quem estava lidando. Fez o governo mais bem-sucedido da República de 46. Soube compor com militares, com a UDN, com o PTB, com o Legislativo, com os empresários, com os bancos. Soube fazer uma grande aliança que garantisse a execução de seu Plano de Metas. Hoje é considerado um dos grandes estadistas brasileiros. E é bom lembrar que era um democrata, um político que não pediu golpe, que não fez a carreira por meio de governos de exceção. Então não acho que saiu do poder isolado. Saiu desgastado, devido a uma oposição golpista.

JÂNIO QUADROS (1961)

Jânio, ao contrário de Juscelino, não era um democrata. Ficou só oito meses no poder porque tinha ambições de governar controlando tudo. A análise que fazemos hoje é que ele renunciou porque queria fechar o Congresso. Queria governar com poder absoluto, por medida provisória e decreto-lei. Mas o que aconteceu foi que o Congresso aceitou sua renúncia e logo empossou o presidente da Câmara, já que o vice João Goulart estava viajando. Jânio achava que a renúncia ia complicar tudo, que iam tentar negociar com ele, qua ia haver uma comoção popular. Ele não renunciou em razão de forças ocultas que não dominava, mas por seu projeto de poder mais autoritário.

JOÃO GOULART (1961-1964)

Também não acho que estivesse alienado de informações. Ele tinha uma assessoria militar ruim, é verdade. Em 1964, os generais que estavam com Goulart não tinham tropa e os que estavam na oposição tinham. Mas é subestimar sua capacidade dizer que era enganado por esses militares próximos. Ele sabia o tamanho da conspiração e era muito bem informado. Lembre-se que, quando houve a renúncia de Jânio, Goulart estava na China, com empresários, tentanto abrir o mercado. Quando voltou, havia uma conspiração para matá-lo, para explodir o avião. Então ele foi ao Uruguai e uma comissão de parlamentares foi até lá buscá-lo para descer em Brasília. Havia um escudo humano, com Tancredo Neves liderando essa comissão.

Não se pode dizer que uma pessoa que assume o poder nessas condições de tensão, sob ameaça de morte de um grupo militar, ignorasse a possibilidade de golpe. Ele governou numa situação muito difícil, com oposição forte e desconfiança grande dos militares. E também não tinha o apoio das esquerdas. Parte delas o chamava de reacionário, conservador e entreguista. Então, aí sim, havia um caso de isolamento, mas não de isolamento de informações. Para a direita, ele era extremista, radical. Para a esquerda, tinha medo de tomar iniciativa. Todo o campo ideológico o repelia. Não é à toa que aí aconteceu o golpe. Mas, repito, não por falta de informação de Goulart.

HOMENS FORTES

Os governos mais bem-sucedidos são aqueles que não tiveram homens fortes, no sentido de tomar decisão. Leitão de Abreu, chefe do Gabinete Civil de Médici (1969-1974), não tomava decisão. Administrava, mas não governava. Assim como Golbery, chefe da Casa Civil de Ernesto Geisel (1974-1979), que era um grande assessor, mas não tinha essa bola toda que a imprensa lhe deu, como se fosse um gênio da raça. Não era um intelectual de suporte nem tinha essa força. Entendia o projeto de abertura e o meio político, mas chamava Geisel de "senhor". Zé Dirceu é um homem mais forte. A sensação é de que ele, como presidente do PT e como chefe do Gabinete Civil, recebeu a delegação de ir montando o governo. São as evidências que temos.

IMPEACHMENT

Acho que os quadros do PT não têm projeto de enriquecimento ilícito. Têm, sim, projeto de poder: "Como vamos financiar as campanhas para chegar ao poder e depois para nos manter no poder". Claro que as pessoas do PT não são feitas de um barro diferente, então deve ter gente dentro do PT que quer enfiar a mão. Mas não é o caso da cúpula. Trata-se de um salto político, não patrimonial. O presidente está sendo poupado por todo mundo, acusadores e acusados. Por outro lado, está perdendo a capacidade de governar. Esse núcleo duro que estava próximo dele está muito desgastado e a sensação é de que Lula fica desamparado. E faz uma aliança com o PMDB que não acrescenta nada. Vai governar, mas vai governar inercialmente. Acho que impeachment é difícil, a não ser que venha aí outra revelação mais forte. Mas não gosto de falar no futuro. Minha especialidade é o passado.