Título: Uma empresa, com fila de espera
Autor: Luciana Garbin
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/07/2005, Metrópole, p. C1,4,5

Tráfico funciona como empresa, onde um garoto trabalha das 11 horas até a meia-noite; se não estuda, melhor: entra mais cedo

O tráfico funciona como uma empresa. Tem horário de entrada e de saída, salário, cargos, regras. E até currículo. Muitas bocas-de-fumo trabalham em esquema 24 horas, em dois plantões. E, de tanta concorrência, há longas filas de espera para quem quer entrar. "Você passa, deixa nome na biqueira e volta no dia seguinte", conta John, traficante de 16 anos. "Na minha vez, tinha mais de cem na lista de espera para ser ripa (traficante). Em outras, tem seis moleques para cada vaga. Então se trabalha dia sim, dia não." "O tráfico hoje é a política de emprego e geração de renda na periferia", lamenta a presidente da Associação de Mães e Amigos das Crianças e Adolescentes em Risco, Conceição Paganele. "É a geração condenada. Não consigo enxergar um horizonte para esses meninos do tráfico. Quando se tem muita necessidade, não há muita escolha. É um círculo vicioso."

Na zona leste, alguns gerentes têm equipes e fazem rodízio de pessoal, para não dar bandeira para a polícia. Quando um traficante decide mudar para outra biqueira do mesmo dono, o gerente da antiga boca passa adiante seu currículo. "Você ainda passa por testes", afirma Jonas, outro garoto de 16 anos.

O currículo pode ser uma carta do gerente, contando desde quando o candidato trabalha e o que já fez. "Também diz quanto já vendeu, quantos matou, que armas tem, o jeito que usa as armas, como atira e se tem sangue no olho, se é cruel para matar."

O esquema varia conforme a região. Na área de John na zona norte são cinco dias de trabalho por dois de folga. Para os já "efetivados", o turno pode ser o da manhã - das 9 às 2 horas -, ou à noite - das 2 às 9 horas. Quem está em experiência fica menos tempo - seis horas - de manhã, à tarde, à noite ou de madrugada. Crianças trabalham geralmente das 11 horas à meia-noite. Se não forem à escola, melhor para os traficantes: começam um pouco mais cedo.

Detalhes como esse fazem do tráfico uma das piores formas de trabalho infantil. "Compromete a saúde e a integridade física e moral", afirma Pedro Américo Furtado de Oliveira, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo ele, a expectativa média de vida no tráfico é de dois anos e meio. "E, se começa até 14 anos, vai ser mais difícil querer sair."

No serviço, o uso de drogas é controlado, principalmente maconha. À noite, porém, a cocaína é recomendada para "deixar ligado". "No tráfico não se usa crack, porque o cara vai começar a roubar a própria mãe", diz Jonas. Algumas biqueiras também seguem a regra de não vender maconha depois das 23 horas. Só cocaína e crack. "Tem cara que chega louco de maconha e atrapalha o serviço", explica um traficante da zona norte.

As estruturas podem variar, mas na zona norte as biqueiras costumam ter um ripa - que cuida da droga, tem duas pistolas e ganha de R$ 800,00 a R$ 1.200,00 por semana - e dois panos. Esses ficam com rádios em pontos estratégicos para avisar quando a polícia chega. Faturam R$ 300,00 por semana. Há também o campana, que ganha R$ 500,00 e armas pesadas, com permissão para atirar na polícia em caso de invasão.

"Esses são valores fixos na zona norte. Na leste, é mais. Na oeste menos, porque tem muito menos periculosidade e quase não tem polícia", diz John. Na zona leste, se trabalha com porcentagens. No Jardim Elba, a média é dar 15% do valor vendido. "Só no dia de Natal tirei R$ 600,00", diz Samanta, de 15 anos, no tráfico desde os 12. "Minha mãe não podia dar o que a gente queria. Eu é que fui pedir para trabalhar." Agora, grávida de 8 meses, pretende mudar de vida. "Quero trabalhar de qualquer coisa - garçonete, faxineira, babá -, e cuidar da minha família."