Título: 'Criança acha legal segurar arma na mão e baseadinho'
Autor: Luciana Garbin
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/07/2005, Metrópole, p. C1,4,5

Filho de empregada doméstica e pai preso por interceptação de carro roubado, John está desde a infância no tráfico. Inteligente e articulado, diz que estudou até a 8.ª série e parou "porque a situação não deu outra escolha a não ser cair no crime". Aí, fez carreira. Chegou a braço direito do gerente de uma biqueira. Conta que perdeu muitos colegas e até um parceiro, bem na sua frente. Escolheu o nome John em homenagem a um deles. Hoje, após uma briga, abandonou o bairro onde trabalhava. E vive escondido. Como a criança entra no tráfico?

Eles (os traficantes) chegam: vamos tomar um refrigerante ali? E depois: você pode fazer um favor para mim? Leva um avião (com drogas) na favela para mim? Não vai se complicar...

Com você foi assim?

Comigo foi uma pessoa que começou a comprar roupa para mim, tênis. Todo favor que ele pedia, eu fazia. Já tava usando droga, maconha, comecei com 10 anos. Era curioso, via os meninos usando, fui no embalo.

Já apanhou no tráfico?

Apanhei muito já. Um dia, tava andando na favela, tinha acabado de ir na padaria comprar pão e leite para eles e vi os hómi (policiais). Passei direto porque pensei que o pano (olheiro) já tinha visto e até cumprimentei o outro pano. Quando perceberam, os polícia já tava no morro. Eu apanhei e os dois panos morreram a tiro. Nessas horas não há clemência. Se pedir pelo amor de Deus não me mata, é pior. Vai morrer mais devagar.

Quanto você chegou a ganhar por semana?

R$ 1.200,00. Fui quase gerente.

Por que não chegou lá?

Porque tem de matar muito. Não tinha matado o suficiente (ele não revela quantos foram).

Você se arrepende?

Não. Tava drogado. E foi só cagüeta (delator), nóia (viciado) e pé de breque (quem dá escândalo e atrapalha o tráfico). O cara rouba trabalhador, vou lá, mato o cara, ganho respeito. Quanto mais mata, mais conceito você tem no meio deles. Eles dizem que tem de matar quem corre pelo errado porque o crime corre pelo certo.

Você tem dinheiro guardado?

Dinheiro que vem fácil vai fácil. Eu só comprava roupa de grife em shopping, tive carro, tive moto, não fiquei um mês com eles. Sempre tem um pé frio que encosta em você. Caramba, que carrão, hein? Quando você menos espera, o carinha roubou seu carro. Aí não tem o que fazer, a não ser matar o cara.

Sua namorada é do tráfico?

Não. Para ela, eu era santinho, só andava de terno e gravata (para despistar, traficantes às vezes se passam por evangélicos). Tinha até uma Bíblia com fundo falso e arma dentro.

Você tem filho?

Um de 2 anos e meio.

Você teme vê-lo envolvido com o tráfico?

Não. Ele vai ter vida melhor do que eu tive. Tá com a mãe, a avó, não mora perto de biqueira. Não vai me causar desgosto.

Você pensa em sair do tráfico?

Quero arrumar emprego de caseiro no Rio e largar o crime.

O que pode ser feito para tirar crianças do tráfico?

É difícil afastar a molecadinha. Criança acha legal segurar arma na mão, gosta de fumar um baseadinho na hora que os caras tão fumando e ficar tonto. Mas, se tiver lugar pra jogar videogame, brincar de computador, já é bom pra distrair.